Por Bruna Santos, presidente do Conselho Deliberativo da Open Knowledge Brasil
Em 2016, Bogotá foi o palco do ConDatos, encontro latino-americano para discutir governo aberto na região. No evento, Philipp Schönrock, diretor do Centro de Pensamento Estratégico Internacional, disse “más fácil se devuelve un río que el camino al Estado Abierto”. Na fala dele, podemos destacar dois pontos: a menção que ele fez aos assuntos Estado e Governo Aberto e o cunho otimista.
A noção de Estado aberto esteve presente em várias narrativas naquele encontro e tem sido cada vez mais uma evolução do vernáculo que pautou muitos movimentos globais pela abertura governamental¹. Isso, de algum modo, surge como sintoma de que o conceito transcendeu a barreira teórica e se materializou em histórias concretas e casos de sucesso mundo afora. Porém, como toda transição e amadurecimento, esse processo está cada dia mais difícil. Estamos evoluindo em direção ao Estado Aberto nos referindo a esta extensão de Governo Aberto em todos os níveis e setores da esfera pública.
No entanto, em um momento de crise e ameaça aos direitos já conquistados, o que soa ainda uma narrativa last season é o que nos toma a maior parte do tempo. Entre o advocacy pelo próximo grande movimento e o vazio do meio termo, resta a luta persistente pela defesa dos direitos que já se tornaram inegociáveis – a persistência ainda é a melhor resistência.
O preâmbulo acima fundamenta como o Índice de Dados Abertos (Open Data Index) pode ser um instrumento importante para a manutenção das mudanças positivas em relação à abertura e ainda potencializa a abertura e a geração de valor público a partir de dados abertos da cidade de São Paulo. O índice municipal, lançado na última semana abril pela Open Knowledge Brasil, em parceria com o DAPP, oferece um ponto de partida. Ele representa uma referência numérica que expõe a capacidade do governo da cidade de São Paulo de fornecer dados abertos, apresentando essa informação de forma clara, de fácil entendimento e usabilidade.
São Paulo teve a pontuação 75% no índice. A maioria dos problemas estão relacionados à usabilidade, o que representa as características das bases em relação à completude, atualização e grau de dificuldade de manuseio. Chegou-se até esse número a partir da contagem dos problemas encontrados em cada dimensão analisada, como finanças públicas, dados legislativos e eleitorais, serviços públicos, informações geolocalizadas e indicadores ambientais². Esses problemas foram então categorizados em dois tipos: problemas de usabilidade e de processo.
A frequência de problemas de usabilidade é maior nas seções Qualidade da Água, Previsão do Tempo e Registro de Empresas. Estes problemas são percebidos em quase todas as dimensões. Os critérios de avaliação de problemas são: Dataset incompleto, desatualizado, indisponibilidade de formato aberto, dificuldade de trabalhar os dados, acesso restrito, dificuldade de localizar os dados, download da base completa indisponível e Licença não Transparente.
No que tange aos dados de qualidade da água, o Programa Nacional da Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Vigiagua) estabelece que “compete às Secretarias de Saúde dos estados e do Distrito Federal implementar as diretrizes de vigilância da qualidade da água para consumo humano definidas no âmbito nacional, e às Secretarias de Saúde dos municípios executar as diretrizes de vigilância da qualidade da água para consumo humano definidas no âmbito nacional e estadual”³. Nesse caso, cabe ao município definir o respectivo plano de amostragem da vigilância da qualidade da água para consumo humano. Nessa competência também se insere o monitoramento da qualidade da água em eventos de massa, desastres, como enchentes e epidemias que possam estar associadas a água para consumo humano ou que se proliferam nesses meios.
Dito isso e levando o foco da nossa conversa para as soluções, gostaria de explorar exemplos de geração de valor público de forma compartilhada, a partir de informações de dados abertos governamentais. Olhando para o índice de São Paulo está clara a oportunidade de melhoria na coleta e publicação de dados sobre a qualidade da água. Mas por quê? Porque valor público ‘pode’ ser gerado a partir disso. Apesar da lacuna que percebemos na avaliação de impacto da abertura de dados governamentais, já temos casos que nos apontam para o viés positivo deste investimento. Como muito bem coloca Beth Noveck em um artigo escrito recentemente para a revista Nature:
“the impact of these data on solving public problems needs study. In the United States, data from universities and transport authorities have been transformed into apps to help the public make more-informed decisions about their university education and their commutes to work. And open data can promote civil rights. For example, civil-rights lawyers in Zanesville, Ohio, used data released by utility companies to uncover a 50-year pattern of racial discrimination in water-service provision. But more research is needed on the impact of open data on governing and problem solving.”(4)
Na Índia, o aplicativo Ganga Shravan Abhiyaan tem a versão app e web que permite aos cidadãos participarem da vigilância ambiental e acessar informações sobre a qualidade da água que tomam. O aplicativo facilita a exibição de dados fornecidos pelos cidadãos no painel e mapas de levantamento, além de resultados de pesquisas científicas. Em Zaragoza, aplicações vêm sendo feitas para a verificação da qualidade da água a partir de dados abertos (5), como mostra o vídeo abaixo.
Ainda sobre a geração de benefício público, vale nos atentarmos para o fato de que, no Brasil, as epidemias transmitidas por mosquitos, como a Zika, têm sido foco de cientistas e filantropos (6). O que tem o mosquito a ver com os dados abertos? Bom, na verdade, no ano passado, a epidemia suscitou vários debates pertinentes e ainda não esgotados: aborto, patentes, a eficiência de políticas públicas, etc. Cada debate sempre traz consigo uma janela conceitual, através da qual se olha ao abordar o problema e a solução. Em 2016, escrevi o texto “Zika, governança e problemas complexos” sobre como a epidemia suscitava problemas que iam além da água parada, do mosquito e do repelente. As epidemias como a Zika nos apontam para a (in)capacidade das nossas instituições lidarem com as incertezas, as vulnerabilidades e os riscos que problemas complexos e interdependentes como as epidemias globais representam.
Em tempos em que falamos de resiliência e de planejamento integrado para resolução de problemas complexos, percebe-se o potencial que ferramentas de governo aberto apresentam. Dados abertos, de maneira ampla, podem se tornar parte de um mecanismo global de resposta e prevenção a crises humanitárias. Essas ferramentas são obviamente o primeiro passo para a governança compartilhada de problemas globais complexos como as epidemias. Padrões de compartilhamento de dados abertos minimizariam o esforço da publicação de informações e poderiam resultar na criação de ferramentas como mapas de risco, por exemplo. Mediante o uso de dados mais precisos e detalhados é possível gerar sistemas de detecção e alerta precoce com base em dados históricos e em tempo real. Os caminhos possíveis para a interação da sociedade civil e científica a partir das informações compartilhadas em formato aberto são infinitos – e organizações diversas estariam aptas a trabalhar na busca de soluções mais efetivas para essa crise, cada uma para a sua realidade.
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Notas
1 – Tradução: “É mais fácil inverter o curso de um rio do que o caminho para o Estado Aberto”
2 – Segundo o relatório, as dimensões do índice foram traduzidos para o português pelos autores. São elas: Orçamento Público, Resultados Eleitorais, Mapas da Cidade, Leis em Vigor, Atividade Legislativa, Limites Administrativos, Escolas Públicas, Gastos Públicos, Estatísticas Socioeconômicas, Compras Públicas, Estatísticas do Crime, Localizações, Transporte Público, Registro de Empresas, Concentração de Poluentes, Qualidade da Água, Previsão do Tempo e Propriedade da Terra.
3 – Leia mais na matéria.
4 – Tradução: “O impacto desses dados na solução de problemas públicos requer estudos. Nos Estados Unidos, dados provenientes de universidades e autoridades de transporte se transformaram em aplicativos que ajudam o público a tomar decisões informadas sobre sua educação universitária e seu trajeto para o trabalho. Uma política de dados abertos ajuda a promover direitos civis. Por exemplos, advogados cíveis em Zanesville, Ohio, usaram dados lançados por empresas de serviços para desvelar um padrão de 50 anos de discriminação racial nos serviço de fornecimento de água. Contudo, é necessário pesquisar-se mais sobre o impacto dos dados abertos na gestão e na solução de problemas”.
5 – Como exemplos para publicação de dados sobre qualidade da água, veja alguns que estão sendo implementados em cidades americanas como Nova Iorque, Austin.
6 – A Fundação Gates recentemente anunciou o investimento de 18 milhões de dólares em pesquisa para o combate e imunização dessas doenças.