O texto abaixo foi originalmente publicado no site BRPolítico.
Em artigo escrito especialmente para o BRPolítico, a diretora-executiva da Open Knowledge Brasil, Fernanda Campagnucci, e o jornalista Marcelo Soares, fundador da Lagom Data, analisam os impactos da proposta, contida na Medida Provisória 928, de restringir a validade da Lei de Acesso à Informação Pública enquanto durar a calamidade pública decretada por conta da pandemia do novo coronavírus.
Fernanda Campagnucci e Marcelo Soares, especial para o BR Político
Horas depois da histórica entrevista coletiva da “vaca-amarela”, com o ensurdecedor silêncio dos ministros diante de uma pergunta sobre o combate ao coronavírus, o governo Bolsonaro resolveu mais uma vez impor barreiras ao fluxo de informação com a sociedade.
Para corrigir o “erro de redação” da MP da suspensão de contratos de trabalho, o governo embutiu na noite da segunda-feira (23) uma espécie de “jabuti” numa nova medida provisória. A parte principal desta contém outro deslize dissertativo, digamos, que prejudica o direito de todos os brasileiros à informação em meio a uma pandemia.
Se a informação pública serve como “termômetro” para avaliar em que pé estamos, um momento como este é o pior possível para quebrá-lo.
A MP 928/2020 parece querer tratar de uma preocupação legítima, que é como garantir o atendimento à Lei de Acesso à Informação (LAI) em um momento em que os esforços estão (ou deveriam estar) concentrados no combate ao coronavírus. Mas se originalmente havia alguma preocupação quanto a isso, o texto final da MP definitivamente não a resolve.
Na concepção equivocada da MP 928/2020, estão suspensos os prazos de resposta a pedidos de informações públicas atendidos por servidores em regime de teletrabalho, ainda que mesmo em casa continuem tendo acesso a qualquer informação necessária para responder perguntas feitas pelo cidadão. Recursos não serão conhecidos e os pedidos não atendidos deverão ser refeitos só depois que a calamidade acabar.
A priorização proposta a temas relacionados à medida é apenas retórica. Como priorizar esses assuntos se, no parágrafo seguinte, a MP exclui da necessidade de responder pedidos setores inteiros que estiverem envolvidos no combate à pandemia? Mais grave ainda, quais são esses assuntos relacionados à crise de saúde pública? Economia e questões sociais seriam considerados nesse balaio ou não?
Uma dúvida que pode estar ocorrendo aos epidemiologistas engajados em tentar projetar a capacidade do sistema de saúde, por exemplo, é a respeito de recursos físicos: quantos testes já foram administrados e quantos há em estoque? Responder esse tipo de informação com um prazo mais dilatado – ou negá-la sem possibilidade de recurso – significa promover a falta de agilidade na busca de soluções alternativas.
No Brasil, o esforço de organização das informações que ajudarão no combate ao coronavírus tem sido feito de maneira perigosamente descoordenada. Do início de fevereiro até a semana passada, o Ministério da Saúde manteve um painel digital com dados sobre casos suspeitos, confirmados e descartados por Estado. Esse painel, que já era pouco detalhado, saiu do ar no dia 18 e nunca mais voltou.
Para obter dados municipais, como os reunidos no painel de monitoramento da Lagom Data, é preciso consultar diária e manualmente os boletins epidemiológicos divulgados separadamente pelas Secretarias Estaduais de Saúde, cada uma escolhendo, à sua maneira, como dispor a informação. Essa unificação deveria ser feita pelo ministério; não sendo, recorremos a cada ente federativo separadamente.
Até sexta, o Espírito Santo divulgava os casos por macrorregião, em notícia oficial, mas passou a detalhar por município; São Paulo parou de listar os casos por município no último domingo, e sequer informa de que cidade eram os pacientes que morreram. Continua divulgando em PDF, assim como o Paraná. No Acre, desde 11 de março, a Secretaria de Saúde destaca uma notícia dizendo que não é “momento de desespero”; desde então, os casos confirmados em Rio Branco foram de zero a 17. O Ceará deixou de publicar boletins epidemiológicos na internet na última quinta (19), quando tinha 17 casos confirmados. Na segunda-feira, confirmou 151.
Além disso, como observou a Open Knowledge Brasil, os dados de casos confirmados divulgados pela maioria das secretarias de saúde não vêm detalhados com o sexo e a idade do paciente, nem o tipo de transmissão. Uma honrosa exceção vem da Secretaria de Saúde do Mato Grosso do Sul, que detalha a informação (num arquivo PDF).
É compreensível que os servidores encarregados de atender aos pedidos de informação estejam sobrecarregados pela adaptação à nova rotina de teletrabalho e, especialmente na Saúde, pela demanda extra que vem com um período de pandemia. Para aliviar isso, uma boa prática é implementar mecanismos de transparência ativa das informações que com mais frequência são alvo de pedidos.
O acesso a dados públicos é fundamental para que se possa combater com mais eficácia uma epidemia infecciosa. Durante o surto de ebola na Libéria, em 2014, a insistência do médico sueco Hans Rosling em localizar as lacunas de informação sobre incidência local nas aldeias do país, como colaborador do Ministério da Saúde, foi crucial para ajudar a reduzir a curva de novos casos. Tendo a informação, os agentes de saúde sabiam exatamente onde seu trabalho era mais necessário.
Não é com obscurantismo que o Brasil vai vencer o coronavírus. Muito antes pelo contrário. A sociedade precisa de termômetros operantes para conhecer a febre que tem.
Fernanda Campagnucci é diretora-executiva da Open Knowledge Brasil. Anteriormente, atuou como gestora pública de carreira da Prefeitura de São Paulo, onde foi responsável pela implementação de políticas de acesso à informação e abertura de dados da cidade.
Marcelo Soares é jornalista e fundador da empresa Lagom Data. Quando gerente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (2004-2006), participou da organização das primeiras reuniões da sociedade civil para a criação da Lei de Acesso à Informação