‘Pai’ do jornalismo de dados terá sua vida e obra contada por sua filha, amigos e pessoas que tiveram a carreira transformada por sua obra
Por Marcelo Soares
Se você pensa que jornalismo de dados, desenvolvimento de audiência e de produto são as grandes novidades do jornalismo nos últimos 10 anos, você não pode perder a sessão “50 anos de Jornalismo de Precisão”, que a Conferência Brasileira de Jornalismo de Dados e Métodos Digitais (Coda.Br) promove na noite de 5 de novembro. Ela homenageia Philip Meyer, que já elaborava tudo isso antes de a maioria de nós ter sequer nascido.
Em abril de 1973, Meyer publicou a primeira edição do livro “Precision Journalism”, nunca publicado em português, que estimulava jornalistas a trabalharem com dados e assimilarem a lógica da análise estatística que já vinha sendo utilizada na pesquisa de ciências sociais. É um manual prático, um manifesto teórico e um relato de bastidores de reportagens, tudo no mesmo livro – que, até hoje, ainda não tem edição em português. Algumas bibliotecas universitárias têm exemplares. O da UFRGS só tinha sido lido por mais duas pessoas quando o peguei emprestado pela primeira vez, em 1996, e aquele livro mudou minha vida.
O centro do livro é a experiência que ele havia feito em 1967 ao cobrir as revoltas raciais de Detroit utilizando uma pesquisa estruturada para compreender as opiniões da população negra da cidade sobre a situação de exceção de direitos em que vivia. Analisou os resultados com cartões perfurados, num IBM 360 maior do que a sua geladeira, e demonstrou que o levante era apoiado principalmente não pelos “arruaceiros ignorantes” acusados pelos editoriais, e sim pela população negra mais escolarizada e mais consciente das desigualdades que a excluíam. Com esse trabalho, ganhou o Pulitzer em 1968 e ajudou a qualificar o debate sobre as relações raciais nos Estados Unidos.
Revoltas em Detroit, Michigan, em julho de 1967, foram objeto de análise de Meyer; reportagem lhe rendeu um Pulitzer. Crédito: Nieman Reports
A partir dessa experiência, ele desenvolve no livro uma proposta metodológica que deu origem a alguns dos trabalhos de reportagem mais interessantes das décadas de 1970 e 1980, feitos sob sua orientação ou no mínimo após conversas informais com ele. O livro foi eleito um dos 20 trabalhos mais significativos sobre jornalismo no século 20, mas demorou a receber o devido reconhecimento. Meyer guarda até hoje, com humor, cartas raivosas enviadas à editora por professores de jornalismo que acharam o trabalho inútil nos anos 1970.
(Experiência de quem teve a vida transformada pelo livro de Meyer nos anos 90: até mais ou menos 2010, falar de “jornalismo de precisão” ou “reportagem com o auxílio do computador” no Brasil era recebido mais ou menos como falar de carros voadores. Isso mudou muito desde então, com o nome “jornalismo de dados”.)
Desenvolvimento de audiência? Ele também fazia muito antes de isso se tornar um imperativo nas redações do mundo inteiro. Na década de 1970, a rede de jornais Knight-Ridder o promoveu para trabalhar no departamento que tentava conectar o crescimento da circulação à estratégia da Redação. Com isso, ele acabou se aproximando da American Society of News Editors e escreveu um importante manual para editores que quisessem usar dados de audiência para melhorar o seu produto, “The Newspaper Survival Book”. Ele traz insights preciosos sobre como analisar as minúcias de relatórios de audiência, e no tempo de Meyer sequer se podia saber tanto sobre os leitores quanto se sabe hoje com todas as ferramentas de analytics.
A novidade é trabalhar com produto? Pois é. Nessa fase de sua carreira, final da década de 1970, Meyer participou da criação do serviço de notícias em teletexto da rede de jornais, que seria conhecida como Viewtron. O aparelho era conectado à rede telefônica e ligado à TV de tubo como um console Atari.
Na década de 1980, Meyer se tornou professor em tempo integral, e também teve forte atividade na associação dos pesquisadores de opinião pública dos Estados Unidos, a AAPOR, que presidiu em 1990-1991. Quando perguntei a ele por que sua autobiografia, “Paper Route”, não tem capítulos novos a partir do início de sua carreira acadêmica, ele brincou: “é que esses foram os melhores anos, e anos bons não rendem muitas histórias”. Alunos e colegas seus na universidade fazem referência a um professor aberto, generoso e atento, que transformava situações do cotidiano dos estudantes em ideias de experimentos jornalísticos.
Philip Meyer se aposentou da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill como professor emérito em 2008, alguns anos depois de lançar o livro que resumiu todas as suas preocupações com o jornalismo: “The Vanishing Newspaper”, lançado no Brasil com o título “Os jornais podem desaparecer?”. Debatido mundialmente por apenas uma data casualmente publicada no primeiro capítulo, o livro faz uma análise aprofundada de como os fatores de qualidade do jornalismo impactam no negócio das empresas jornalísticas. O aspecto principal escapou ao debate, e permanece o mais importante.
Completando 92 anos em outubro, Meyer vive na Carolina do Norte, cercado dos cuidados da família. Ele adoraria estar presente no Coda para a homenagem, mas devido às suas condições de saúde não poderá. Por isso, ele será representado pela sua filha Melissa Meyer, professora de arquitetura, que era um bebê durante o ano em que Phil aprendeu a domar o IBM 360 em Harvard.
Na noite do sábado, dia 5 de novembro, eu e Melissa conversaremos sobre as histórias dele. Por vídeo, alguns dos maiores jornalistas que foram inspirados por sua obra também darão seus depoimentos sobre como o trabalho de Philip Meyer transformou suas carreiras e a maneira como pensam sobre o jornalismo. Além da sessão, teremos uma pequena exposição contando a história de Meyer e apresentando toda sua obra. A homenagem tem o apoio da Lagom Data, do Knight Center for Journalism in the Americas, da Universidade do Texas, e do Labjor/Unicamp.
Você não pode perder essa chance de receber a inspiração do exemplo de um mestre que precisa ser mais conhecido. Tudo fica mais claro quando sabemos de onde as coisas vieram.
Marcelo Soares dirige o estúdio de inteligência de dados Lagom Data, é membro do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) e trabalha com análise de dados no jornalismo desde 1998, após ser inspirado pela obra de Meyer. Anteriormente, foi editor de audiência e dados da Folha de S.Paulo, correspondente especial do Los Angeles Times no Brasil e membro fundador da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, onde também foi o primeiro gerente.