Isabela Cruz
10 de outubro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h45)
O ‘Nexo’ fala com especialistas sobre a importância do conceito para a gestão pública e como ele tem sido escanteado no âmbito federal
Os sigilos impostos pelo governo Jair Bolsonaro a informações de interesse público ganharam espaço na campanha eleitoral de 2022, chamando atenção para um tema que tem transformado os debates sobre democracia ao redor do mundo: a ideia de governo aberto.
Com transparência como um de seus pilares, a agenda de governo aberto é um compromisso assumido por dezenas de países ao redor do mundo, incluindo o Brasil. Mas a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), na qual o Brasil pretende entrar, apontou em 2022 problemas do país na área .
Neste texto, o Nexo explica o que é governo aberto, resgata a presença do tema na administração federal brasileira ao longo da última década, e fala com dois especialistas sobre o momento atual do país.
A ideia de governo aberto
A agenda de governo aberto ganhou impulso globalmente quando o então presidente americano Barack Obama usou o termo “open government” em 2009 para traçar uma estratégia de atuação da gestão pública baseada em princípios como transparência e integridade.
Em 2011, Obama e líderes de outros países, incluindo a então presidente brasileira Dilma Rousseff, lançaram, junto com organizações da sociedade civil, uma iniciativa chamada “Open Government Partnership” ou OGP (Parceria para Governo Aberto), que hoje reúne 77 países, mais de uma centena de governos locais e milhares de organizações.
A OGP busca promover no mundo a agenda de governo aberto. Segundo a declaração assinada pelos membros da iniciativa, isso passa pela articulação de quatro eixos :
Aumentar a disponibilidade de informações sobre atividades governamentais
Apoiar a participação cívica
Implementar os mais altos padrões de integridade profissional em toda a administração pública
Aumentar o acesso a novas tecnologias para abertura e “accountability” (controle e responsabilização dos agentes públicos)
Uma série de outras organizações também decidiram lidar com esses temas, que se tornaram objeto de tratados e legislações domésticas, de forma integrada.
A OCDE, por exemplo, passou a avaliar a atuação de membros e parceiros nessa área, definindo governo aberto como “ uma cultura de governança que promove os princípios de transparência, integridade, controle e participação das partes interessadas em apoio à democracia e ao crescimento inclusivo”, constituindo assim “uma transformação fundamental na forma como os governos e a sociedade interagem”.
O processo brasileiro
No Brasil, uma série de mudanças legais buscaram nos anos 2010 implementar os compromissos de governo aberto, puxadas por um Plano de Ação Nacional para o tema editado em 2011 por Dilma.
Ainda em 2011, o governo conseguiu a aprovação da Lei de Acesso à Informação pelo Congresso. O texto estabeleceu que a transparência das informações de interesse da sociedade deve ser a regra da gestão pública brasileira, restringindo as hipóteses de sigilo a situações excepcionais.
Um outro marco importante dos esforços pelo governo aberto foi a aprovação em 2014, já no segundo mandato de Dilma, da Política Nacional de Participação Social. Estruturou-se um sistema para integrar e fortalecer uma série de mecanismos de diálogo entre a gestão pública e a sociedade. Entre eles, conselhos gestores de políticas e conferências nacionais temáticas que haviam sido criados a partir da redemocratização do país, no final da década de 1980.
Mas a expansão da participação social começou a sofrer reveses já no final do governo Dilma, dentro do Congresso.Nos anos seguintes, os reveses vieram da própria Presidência, controlada primeiro por Michel Temer e depois por Jair Bolsonaro.
Uma das medidas mais críticas tomadas foi um decreto de 2019 do atual presidente que extinguiu, de uma só vez, dezenas de mecanismos de participação popular, alegando a necessidade de reorganizar a gestão pública. Nada foi posto no lugar.
Acionado pela oposição, o Supremo Tribunal Federal considerou que a medida de Bolsonaro violava princípios da Constituição e da legislação brasileira, e determinou a reinstituição dos órgãos de participação popular. Ainda assim, o governo federal atuou para minar a atuação de diversos deles.
Ao longo do governo, a imposição frequente de sigilos sobre informações relativas à Presidência e seus ministérios também prejudicou a abertura do governo, erodindo o pilar da transparência. A gestão Bolsonaro, por sua vez, alega que avançou na área, citando medidas como a edição de decreto para instituir uma Política Nacional de Governo Aberto , em 2019, o lançamento de um Plano Anticorrupção , em 2020, e a criação de um Sistema de Integridade Pública em 2021.
Em avaliação apresentada em junho de 2022, a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) recomenda ao governo brasileiro “ ampliar a compreensão do governo aberto, abraçando plenamente a proteção do espaço cívico como um capacitador para isso ”. A organização também afirma que as reformas de governo aberto devem estar ligadas mais diretamente “à melhoria da confiança dos cidadãos nas instituições públicas e no fortalecimento da democracia no Brasil”.
A abertura do governo brasileiro sob análise
Sobre a importância da agenda de governo aberto e a atuação da gestão federal nessa área, o Nexo conversou com dois especialistas no tema:
Danielle Bello , especialista em gestão pública e coordenadora de advocacy e pesquisa na Open Knowledge Brasil
Guilherme France , pesquisador sênior do FGVethics (Centro de Estudos em Ética, Transparência, Integridade e Compliance da Escola de Administração de Empresas da FGV)
Como políticas de governo aberto abrangentes, que passem inclusive pela ampliação da participação social, podem contribuir para a gestão pública?
DANIELLE BELLO Temos que ter como ponto de partida o seguinte: quando falamos de governo aberto, falamos sobre um conjunto de princípios e ações articuladas, voltadas a transparência, acesso a informação, participação social, accountability, integridade, incorporação de inovação e tecnologias na gestão pública, que fortalecem umas às outras e contribuem para que elas alcancem seus objetivos.
Ou seja, não são ações que se implementam de forma isolada ou desconectada. E isso é o diferencial, porque muito já se fazia em cada um desses eixos antes de a agenda de governo aberto se consolidar. Então a própria literatura sobre o tema aponta há anos, de forma crítica, como muitas vezes, na prática e também no discurso, essa agenda é reduzida a iniciativas que, em tese, fariam parte de estratégias de abertura de governos – por exemplo, a abertura de dados ou a inovação tecnológica –, mas que não compõem, num quadro mais amplo, uma estratégia de governo aberto de fato.
E como essa agenda contribui para a gestão pública? Ela sugere uma forma de governar que prioriza a sociedade e que busca romper com formas desgastadas de interação com o Estado, construindo laços de colaboração e de confiança entre governo e sociedade. Busca superar uma visão de tutela das pessoas, de que é o Estado que tem todas as respostas e sabe o que é melhor para as pessoas.
Aqui nessa agenda falamos de políticas melhores, mais responsivas às demandas da população, e de um Estado que seja verdadeiramente representativo da sociedade em toda a sua diversidade. Essa construção [de políticas] pressupõe identificar devidamente quais são essas demandas. Pressupõe não só o diálogo entre diferentes vozes, mas também pressupõe monitorar, avaliar o que está sendo feito. E só podemos fazer isso com dados e informações que nos permitam construir – não só da perspectiva do governo, mas também da sociedade – diagnósticos, cenários, caminhos e soluções para avançar com base em evidências.
Dessa forma, as políticas e a gestão pública se tornam mais eficientes e mais efetivas, à medida que estamos direcionando os recursos para onde eles realmente precisam ir. No final das contas, estamos falando da construção de Estados responsáveis, estamos falando de princípios fundamentais da própria democracia.
GUILHERME FRANCE O conceito de governo aberto se baseia em quatro pilares: transparência, participação,“accountability” e integridade. Cada um deles contribui de diferentes formas, mas complementarmente, para a gestão pública.
Mais transparência, por exemplo, permite um adequado controle social das ações dos governos, além de criar um ambiente de abertura e confiança entre cidadãos e gestores. Ampliar os canais de participação permite um envolvimento permanente da sociedade com a coisa pública, para além apenas do processo eleitoral. Implementar políticas de integridade e“accountability” não só previne a corrupção, como também torna os governos mais responsivos às demandas da sociedade.
Políticas de governo aberto contribuem, portanto, para a construção de um sistema de governança que não só fornece informações sobre o funcionamento do setor público para a população, mas também garante que ela participe ativamente da construção das políticas públicas e da fiscalização quanto à sua implementação.
A população é a maior conhecedora das suas próprias necessidades. Por isso, incluí-la em todas as fases do ciclo de desenvolvimento de políticas públicas – planejamento, implementação, monitoramento e avaliação – é fundamental para garantir que a gestão pública alcance os maiores níveis de eficácia e eficiência.
Como avalia a atuação do governo atual nessa área?
DANIELLE BELLO Pensando que o Brasil foi um dos países fundadores dessa agenda e considerando tudo o que foi construído anteriormente, no geral temos visto não só uma atuação muito aquém do potencial que temos, mas também uma desmobilização de muitas dessas iniciativas e um enfraquecimento explícito de alguns desses eixos.
Essa revisão recente da OCDE sobre governo aberto no Brasil identificou muito acertadamente a fragmentação das ações nesse âmbito no governo federal e como a participação social vem sendo minguada. Acompanhamos esse enfraquecimento deliberado especialmente com o decreto que extinguiu a Política Nacional de Participação Social, e com ela diversos colegiados. Mas temos observado também, em muitos processos, a participação se reduzindo à realização pró-forma de consultas públicas, quando há muitas outras formas de participação que caminham numa perspectiva de colaboração, colocando as pessoas numa posição mais ativa dentro desses processos.
A própria revisão da OCDE apontou uma dificuldade de identificar como os inputs que vêm da sociedade se refletem nas políticas que estão sendo elaboradas em processos que se apresentam como participativos, além de lacunas em outros momentos do ciclo de políticas públicas. Há uma proeminência da participação na fase de formulação que não se mobiliza nas fases seguintes, de implementação, monitoramento e avaliação.
Para além desses espaços institucionais extintos ou enfraquecidos, são muitos os estudos e levantamentos, nacionais e internacionais, que confirmam como nós temos regredido nesses últimos anos em liberdade de expressão, liberdade de imprensa e, paralelamente, como nós temos avançado na violência contra jornalistas, ativistas, em especial de direitos humanos, ambientalistas, indigenistas…A revisão da OCDE reforça como o espaço cívico no Brasil tem encolhido, inclusive apontando como há maiores dificuldades e até obstruções no caso de populações minorizadas, como mulheres, pessoas pretas, indígenas, LGBTQIA+.
Além dos mecanismos e dos espaços seguros para a participação, para que se tenha condições de participar, é fundamental que se tenha acesso a informação, e de forma qualificada. Nesse ponto, temos visto enormes retrocessos com esses volumosos casos de sigilo indevido que a atual gestão vem aplicando a informações que são indiscutivelmente de interesse público. Distorções na aplicação da Lei de Acesso à Informação para reforçar a opacidade, e não a transparência. Fora o fato de que o próprio governo federal opera como um vetor de desinformação. Vimos muito isso acontecendo durante toda a pandemia e agora também no período eleitoral, seja institucionalmente seja na figura da Presidência.
Nesse âmbito da transparência, existe também o enfraquecimento de espaços fundamentais para se pensar a política de transparência e abertura de dados de forma mais ampla, como a Infraestrutura Nacional de Dados Abertos, a Inda. Ela tem funcionado de forma muito tímida e tido dificuldades de alcançar os objetivos do último plano de ação, do biênio de 2021-2022, ainda que ele seja pouco audacioso de forma geral. Esse ponto de transparência, inclusive, é um ponto de contradição da revisão da OCDE, porque ela coloca esse eixo como uma grande prioridade do governo federal na agenda de governo aberto, e isso não é definitivamente o que temos visto na prática.
Claro, medidas de prevenção e combate à corrupção e de promoção da integridade [como o governo Bolsonaro alega ter feito] são indispensáveis. Mas elas perdem força quando se olha para o quadro geral: a ausência das demais ações de governo aberto e as contradições do governo federal nesse campo, quando vemos, por exemplo, episódios de interferência por parte do Planalto na Polícia Federal, em investigações de casos que envolvem a alta cúpula do governo e a própria família do presidente.
GUILHERME FRANCE É impossível dissociar uma avaliação sobre as iniciativas relacionadas ao governo aberto do conjunto mais amplo de ações (e omissões) da administração Bolsonaro que vêm produzindo um progressivo fechamento do espaço cívico brasileiro.
Os princípios centrais do governo aberto pressupõem um ambiente de estabilidade democrática e de respeito ao Estado democrático de Direito, os quais têm sido rotineiramente colocados em xeque pelo atual governo.
Dessa forma, os ataques à imprensa e às organizações da sociedade civil, as reiteradas interferências políticas nas instituições de accountability brasileiras, como Ministério Público e Polícia Federal, o desmonte do arcabouço institucional de participação social na formulação e implementação de políticas públicas e a conivência com graves esquemas de corrupção, tudo isso impede o avanço efetivo do governo aberto no Brasil.
Não podemos nos basear em uma concepção tecnocrática do que seriam reformas destinadas a promover o “governo aberto”, sob o risco de permitir a sua instrumentalização, especialmente no contexto de um governo que busca na adesão à OCDE uma legitimação externa, que perdeu em outros fóruns internacionais.
Os inúmeros retrocessos nos campos da transparência, participação social e combate à corrupção não representam apenas um “obstáculo” à implementação de reformas de governo aberto, mas sim uma barreira intransponível para a construção de um governo mais inclusivo e eficaz no atendimento às inúmeras demandas do povo brasileiro.