Relatório da transição do governo Lula diz que houve desmonte das políticas de transparência sob atual presidente
A revogação dos sigilos decretados ao longo do governo de Jair Bolsonaro (PL) demandará um amplo processo de revisão por órgãos administrativos responsáveis por políticas de transparência, como a CGU (Controladoria-Geral da União).
Durante a campanha, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) prometeu emitir um decreto para revogar os chamados sigilos de 100 anos decretados sob Bolsonaro.
Entre os casos estão as restrições de acesso à carteira de vacinação do presidente, ao processo da Receita Federal referente a Flávio Bolsonaro e ao processo disciplinar contra o ex-ministro Eduardo Pazuello.
A conclusão do grupo de trabalho de transparência apresentada no relatório final do gabinete de transição foi que a gestão Bolsonaro agiu para fragmentar e constranger a ação de órgãos cruciais para a transparência.
“O recurso à imposição de sigilos foi usado como forma de manter ocultas circunstâncias vinculadas à conduta de autoridades e integrantes próximos ao círculo do poder, sob falso pretexto de proteção da segurança nacional e segurança do Presidente da República, seus familiares, apoiadores e auxiliares diretos”, diz o relatório.
Como medidas a serem adotadas, o grupo recomendou que Lula determine a reavaliação pela CGU de imposição indevida de sigilo de 100 anos.
Outra sugestão é que o presidente determine que a Advocacia-Geral da União faça um parecer vinculante sobre como o artigo da LAI (Lei de Acesso à Informação) referente à proteção de dados pessoais deve ser aplicado. A medida obrigaria o cumprimento pelas autoridades do Executivo federal.
A recomendação diz respeito ao dispositivo do artigo 31 da LAI que restringe por até 100 anos o acesso a informações pessoais que atinjam a intimidade, vida privada, honra e imagem de alguém.
Para especialistas em transparência ouvidos pela Folha, a gestão Bolsonaro distorceu a lei e praticou abusos.
O advogado Bruno Morassuti, cofundador da Fiquem Sabendo, diz que a restrição de acesso não é sigilo e nem deve ser aplicada para agentes públicos no exercício de suas funções, lobistas e beneficiários de recursos públicos.
“A lei fala até 100 anos, e não 100 anos automaticamente, mas isso virou costume. O ideal seria que esse prazo só fosse aplicado para informações pessoais muito sensíveis, sempre de forma fundamentada, porque o princípio da LAI é transparência é a regra e o sentido é a exceção”, diz.
“Os tais ‘sigilos de 100 anos’ são negativas de acesso à informação sob o argumento de que eram informações pessoais quando claramente não eram. Eram informações de interesse público”, acrescenta Marina Atoji, diretora de programas da Transparência Brasil.
A alteração do decreto que regulamentou a LAI para deixar claro que a norma não pode ser aplicada em casos de evidente interesse público foi recomendada pelo Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas ao grupo de transparência da transição.
Além da interpretação distorcida, especialistas também questionam os critérios para classificar sigilos adotados sob Bolsonaro.
Segundo a LAI, o prazo máximo é de 25 anos para informações ultrassecretas, 15 anos para as secretas e 5 anos para aquelas de acesso reservado.
“Tivemos casos em que já havia um entendimento sobre a divulgação, mas, mesmo assim, a informação passou a ser negada de forma casuística, como punições a agentes públicos. No caso do Pazuello, não conseguimos ter acesso ao documento”, diz Morassutti.
Júlia Rocha, coordenadora do Programa de Acesso à Informação e Transparência da Artigo 19, acrescenta que o caso do general a negativa de acesso teve como base a hierarquia militar, o que não justificaria a restrição. Por envolver as Forças Armadas, ela acredita que a revogação será mais complexa.
A LAI também prevê o sigilo para informações que possam colocar em risco a segurança do presidente e vice-presidente da República, esposas e filhos, até o término do mandato.
Para especialistas, o registro de entradas e saídas dos filhos do presidente do Planalto não poderia ser lido de tal maneira.
Sobre o caso, Júlia Rocha explica que será preciso reavaliar a classificação que restringiu a informação. “A análise caso a caso é melhor para que se crie precedentes positivos e parâmetros para a aplicação do artigo 31 da LAI.”
Valdir Simão, ex-ministro da CGU no governo de Dilma Rousseff, explica que Lula pode determinar a revisão de ofício pela Comissão Mista de Reavaliação de Informações, prevista no artigo 35 da LAI e que pode ser realizada a cada quatro anos. Segundo ele, a última vez em que isso ocorreu foi em 2016.
“O presidente da República pode constituir um grupo de trabalho específico e de alto nível para fazer a revisão de ofício e também se debruçar sobre os casos de pedidos de acesso à informação negados com base no artigo 31, sobre informações pessoais”, diz.
Simão, ex-CGU, também sugere ao novo governo reestruturar o Conselho de Transparência e dar a ele total acesso às informações classificadas.
Para ele, a medida seria um salto em transparência e participação da sociedade, além de dar mais segurança para os funcionários da administração pública que classificam as informações.
“Há um fenômeno de apagão das canetas dos administradores por temor de responsabilização dos órgãos de controle. Nós precisamos mudar essa agenda e garantir a esse gestor público segurança nas suas decisões a partir da chancela de um conselho de transparência de alto nível.”
Além das negativas de acesso à informação, a diretora-executiva da Open Knowledge Brasil, Fernanda Campagnucci, acrescenta que também será preciso analisar os problemas na transparência ativa, dados que deveriam ser disponibilizados pelo governo, mas foram retirados do ar.
Exemplo disso foi a decisão do Inep de deixar de publicar microdados sobre avaliações de ensino a partir de uma interpretação equivocada da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados).
“Pode ter um ato para dizer que esses dados têm que ser republicados. São decisões administrativas, que o próprio Executivo pode tomar, porque é simplesmente uma mudança de interpretação”, afirma.
Júlia Rocha (Artigo 19) afirma que a LGPD não é inimiga da transparência e é preciso estabelecer diretrizes para a aplicação pelos órgãos públicos.
“A LGPD serve para proteger a privacidade e intimidade de cidadãos frente ao Estado e grandes corporações, não para blindar pessoas públicas da sua obrigação da obrigatoriedade de transparência sobre seus atos”, diz.