Como a tecnologia serve à melhoria das políticas públicas? O tema está na ordem do dia e foi escolhido pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) para a edição de dezembro do Panorama Setorial da Internet. Com o título “Tecnologias emergentes e serviços digitais no setor público”, o material conta com uma entrevista da diretora-executiva da Open Knowledge Brasil, Fernanda-Campagnucci.
Referência no debate sobre transparência, tecnologia e governo aberto, Fernanda falou sobre a importância da abertura de dados governamentais, da literacia de dados e de sua governança para a transformação digital no setor público. A expansão da Inteligência Artificial (IA) no setor público, o avanço na agenda de governança de dados, especialmente na América Latina, e as dificuldades enfrentadas pelo Sul Global na corrida tecnológica, também foram analisados pela diretora da OKBR.
“Temos no Brasil uma comunidade vibrante de tecnologia que pode ser envolvida e tem prazer em contribuir com a solução de problemas públicos, via cooperação técnica ou colaboração voluntária. Como organização da sociedade civil, desenvolvemos projetos em código aberto, como o Querido Diário, que reúne centenas de voluntários com alta capacidade técnica”, explicou Fernanda Campagnucci.
Na ocasião, a diretora da OKBR também falou de outros projetos desenvolvidos para estimular a abertura de dados no período de pandemia, como o curso “Publicadores de Dados: da gestão estratégica à abertura” e o ebook “Emergência dos dados”.
Na edição de dezembro do Panorama Setorial da Internet, iniciativas de governo digital e a oferta de serviços públicos durante a pandemia de Covid-19 também foram destaque.
Confira a entrevista completa!
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Panorama Setorial da Internet (P.S.I.)_ Considerando a transformação digital no setor público, qual a importância da abertura de dados do governo? Quais são as melhores práticas adotadas por organizações governamentais em nível internacional?
Fernanda Campagnucci (F.C.)_ A abertura de dados deve ser considerada um dos pilares fundamentais de qualquer estratégia de transformação digital, mas muitas vezes são políticas tratadas de forma estanque, inclusive tocadas por estruturas governamentais diferentes. Pensar uma política de abertura de dados não se restringe ao tema da transparência, pois envolve trabalhar com todo o ciclo de dados e não somente com a publicação. Implica desde planejar e aprimorar a coleta dos dados até projetar as formas mais avançadas de disponibilização, como as API (Application Programming Interface), passando pela avaliação constante da qualidade desses dados. Ao implementar uma boa política de abertura de dados, a mesma infraestrutura serve tanto a propósitos internos, para uso do próprio governo em suas políticas e serviços digitais, quanto à divulgação externa para todos os demais órgãos públicos e setores da sociedade. Pensar tudo isso como parte de um mesmo quadro referencial de governança de dados é importante pois articula ainda outras dimensões fundamentais da transformação digital: segurança digital e proteção de dados pessoais. Dessa forma, transparência e privacidade podem ser pensadas desde o início da concepção de novos sistemas e serviços digitais, por padrão.
Outro benefício de abrir dados no âmbito da transformação digital do setor público é a inovação aberta, pois a oferta de dados abertos de qualidade amplia as possibilidades de engajar o setor privado, a academia e a sociedade civil na busca e no desenvolvimento de soluções para os problemas públicos. Assim, o setor público aumenta sua capacidade de criar produtos digitais. Se, além de abrir os dados, os órgãos abrirem o código-fonte de seus sistemas e aplicativos, também podem se beneficiar da colaboração de diversas comunidades técnicas.
No plano internacional, alguns exemplos de experiências bem-sucedidas de estratégias digitais que fizeram essa articulação de transparência, digitalização, colaboração e código aberto são o Government Digital Service (GDS) do Reino Unido, ou as ações em torno da República Digital na França. Há outras experiências também no nível local, como a cidade de Barcelona, na Espanha.
P.S.I._ Na sua opinião, que medidas podem ser tomadas para promover a literacia de dados entre servidores públicos? Quais as iniciativas atualmente existentes e quais as barreiras para sua implementação?
F.C._ A própria implementação de uma política de governo aberto é um processo pedagógico em si, porque, ao abrir dados e processos, os agentes públicos interagem com todo o ecossistema e aprendem por terem contato com novos temas e práticas. Não há nada mais eficiente do que aprender, a partir de projetos reais, a solucionar problemas do dia a dia.
Algumas experiências ilustram bem dessa ideia. No Pátio Digital – iniciativa de governo aberto na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, que coordenei entre 2017 e 2019 –, extensionistas de universidades fizeram oficinas de dados para gestores públicos, gestores mais experientes conduziram formação para que outros usassem as ferramentas e bases de dados abertas, e uma cooperação com o terceiro setor permitiu implementar todo um novo fluxo de automação de dados, que passou a ser mantido pela própria secretaria, para citar alguns casos.
Quando a secretaria abriu microdados inéditos, era uma base de dados tão robusta que demandava o uso de software estatístico ou linguagem de programação, o que pouca gente sabia fazer. Foram realizados encontros periódicos no Pátio Digital e um pesquisador, pai de aluno da rede municipal, ofereceu um curso aberto sobre a linguagem R para usar esses dados. O espaço lotou e não cabia todo mundo, porque gestores de outras secretarias da prefeitura apareceram também. Em geral, há demanda e interesse, porém faltam oportunidades.
Outra experiência interessante com foco em formação é o Programa Agentes de Governo Aberto, também na Prefeitura de São Paulo, que ajudei a implementar em 2015, quando estava na Controladoria Geral do Município. Nessa iniciativa, mantida por diferentes gestões até hoje como parte da política de governo aberto, editais selecionam propostas de oficinas ofertadas pela própria sociedade, tendo os gestores como um dos públicos. Mais de 30 mil pessoas já passaram pelas formações, e o projeto foi reconhecido como prática governamental replicável pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Há também boas escolas de governo por todo o Brasil que poderiam ser mais bem aproveitadas e integradas com a sociedade e com os problemas públicos. A Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) tem boas iniciativas nesse sentido.
Durante a pandemia, para apoiar a abertura de dados, a Open Knowledge Brasil desenvolveu o curso “Publicadores de Dados: da gestão estratégica à abertura” 19, que já formou quase mil servidores de todo o país. Na publicação Emergência dos dados20, sistematizamos casos bem-sucedidos de abertura durante a crise de COVID-19. Boas práticas de governança dos dados envolvem formação contínua.
P.S.I._ Em relação à expansão da Inteligência Artificial (IA) no setor público, como é possível avançar na agenda de governança de dados, especialmente na região da América Latina e do Caribe?
F.C._ Uma situação comum na região é a ausência de estruturas de governança de dados, o que impacta na forma como se introduzem projetos de IA no setor público por vários motivos. Cito três. Primeiro, porque os dados são o principal insumo da IA, e se não há organização, não se conhecem os dados e o potencial que eles têm. Em segundo lugar, a qualidade dos dados é determinante para obter bons resultados de modelos de IA, inclusive para controlar vieses. Finalmente, porque a transparência algorítmica, condição necessária para implementar modelos éticos e legítimos de IA no setor público, também demanda abertura de dados e de processos.
Assim como na transformação digital, a governança de dados também é estruturante para IA. Por exemplo, implementar catálogos ou inventários de dados, prática central para a governança de dados numa organização, ajuda a conhecer os dados disponíveis e seu potencial para aplicação de modelos de IA. Os Planos de Dados Abertos, outro instrumento de governança, podem ajudar a priorizar o tratamento de bases de dados que servirão de insumo para tal. Relatórios de impacto, fundamentais para a proteção de dados pessoais, são igualmente importantes para a avaliação ética do uso dos dados em modelos de IA. Além disso, o estabelecimento de pipelines de dados, que estruturam desde a coleta até a publicação dos dados, ajuda na sustentabilidade dos projetos, pois garante a disponibilidade e a atualização das fontes de dados.
Mas o mais importante aspecto da governança, na minha opinião, é o envolvimento de mais atores na tomada de decisões. A IA será usada para qual finalidade? Quais problemas públicos se pretendem resolver e para quem? Quem participa da revisão e da avaliação do processo?
Um bom exemplo dessa orientação à solução de problemas públicos foi o EmpatIA, uma chamada pública da Iniciativa Latino-americana para Dados Abertos (ILDA) com o Centro Latam Digital (CLD), o International Development Research Centre (IRDC) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), cujo foco era o uso de IA para o desenvolvimento (AI4D). Diversos projetos foram desenvolvidos com apoio do programa, como o monitoramento da qualidade do ar no Chile, a anonimização de processos na Argentina, o monitoramento de licitações no Paraguai e na Colômbia. Nós, da Open Knowledge Brasil, participamos com o Querido Diário, projeto que coleta e processa texto de diários oficiais municipais – uma massa de texto intratável por humanos e que pode se beneficiar de IA com o processamento de linguagem natural.
P.S.I._ De uma perspectiva do Sul Global, como os governos podem enfrentar os desafios envolvendo o colonialismo digital e de dados?
F.C._ O Sul Global enfrenta uma situação complicada na corrida tecnológica, com o subfinanciamento das políticas de pesquisa e desenvolvimento e a fuga de talentos para o Norte Global. Isso se reflete em um nível local, com governos tendo dificuldades de desenvolver as próprias soluções por, entre outros motivos, não conseguir atrair talentos e disputar pessoas capacitadas com o setor privado. Essa situação também provoca um problema do ponto de vista da soberania tecnológica: colocando-se no papel de consumidores de soluções proprietárias e infraestruturas privadas, os governos não têm, muitas vezes, acesso ade- /Panorama Setorial da Internet “(…) a transparência algorítmica, condição necessária para implementar modelos éticos e legítimos de IA no setor público, também demanda abertura de dados e de processos.” 27 quado aos próprios dados que produzem ou coletam. Por isso, é fundamental implementar políticas de infraestruturas abertas. Mesmo em parceria com o setor privado, a prioridade deve ser dada a padrões abertos que permitam a interoperabilidade entre sistemas e contratos que prevejam códigos abertos. Desse modo, mais atores podem ser envolvidos e colaborar, além de não criar dependência de grandes fornecedores com práticas atrasadas e ser uma medida de transparência que permite a otimização de recursos entre órgãos públicos e a fiscalização da aplicação do investimento.
Temos no Brasil uma comunidade vibrante de tecnologia que pode ser envolvida e tem prazer em contribuir com a solução de problemas públicos, via cooperação técnica ou colaboração voluntária. Como organização da sociedade civil, desenvolvemos projetos em código aberto, como o Querido Diário, que reúnem centenas de voluntários com alta capacidade técnica. É um recurso valioso. Por que os governos não podem fazer o mesmo?
Na Europa, por exemplo, há uma campanha com adesão de centenas de organizações e especialistas chamada “Public Money, Public Code”, ou seja: se o governo investe em determinada tecnologia, ela deve ser considerada pública, um bem comum. Os chamados Digital 9, ou simplesmente os países D-921, reúnem os principais governos digitais do mundo, localizados sobretudo no Norte Global, com uma declaração de princípios que estabelece código aberto, governo aberto e padrões abertos, entre outros, como parâmetros para sua cooperação. Os países do Sul Global também precisam estabelecer compromissos semelhantes para superar seus desafios.
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