O fosso histórico entre cidadãos e Estado ainda não se reduziu, com a nova afluência nacional e com as transformações nos meios de comunicação. Mas ele foi revelado ao longo dos últimos anos para os cidadãos e, agora nas ruas, para os governantes.
Que há um descompasso entre a sociedade e o poder estatal no Brasil não é novidade, e nem é novidade que esse descompasso coexista com a liberdade. Foi nos anos 1950, uma época boa para a democracia brasileira, que Raymundo Faoro escreveu “Os Donos do Poder”, onde examinou as raízes não do autoritarismo brasileiro, mas do profundo descaso do Estado com o cidadão. Para Faoro, herdamos da Coroa Portuguesa o patrimonialismo – a visão do país como propriedade do rei – e do Estado Português seu grupo dirigente – o estamento. Esse estamento incrustado no Estado, com valores próprios e forte solidariedade interna, tem como objetivo maior sua própria manutenção; a sociedade está aí para servi-lo e não o contrário, como na ordem liberal. Faoro é tão atual que causa espanto não ser mais lido, estudado e traduzido: é daqueles autores que parecem sempre falar do “hoje”, como Georg Simmel ou Sergio Buarque de Holanda. Sua obra é o elefante na sala do pensamento brasileiro, que ninguém comenta pois se o fizéssemos não falaríamos de outra coisa.
O Brasil tem uma tendência patrimonialista, mais ou menos como um paciente tem escoliose: se fica muito tempo sem fazer exercícios – diálogo entre Estado e sociedade -, entorta de vez e aí surgem os problemas. Estamos vivendo esse momento, onde a dor nas costas se instalou, mas se a correção do desvio vai ser autoritária ou democrática não há como prever. Já a tivemos dos dois tipos, e portanto um descompasso muito grande entre sociedade e Estado, como o de hoje, é preocupante. A cisão entre o estamento e o cidadão comum aumentou com nossa nova pujança econômica e também foi exposta pela modernização recente na sociedade brasileira, especialmente no que diz respeito aos meios de comunicação. Mas antes de analisar as causas dessa maior cisão, vamos ver como esse descompasso entre sociedade e Estado é sentido no cotidiano.
O estamento tem linguagens distintas, valores distintos e objetivos distintos dos nossos. Coisas que para nós são simples escolhas, numa sociedade repleta de opções, para o estamento podem se afigurar como alta traição. Participar de um concurso público que “todo mundo sabia que era para o fulano”, por exemplo, é falta grave. Descrever publicamente os processos estamentais cotidianos, então, é gravíssimo. Veja que no lugar do termo inglês whistle-blower, que evoca uma pessoa preocupada soando um alarme, temos o nosso dedo-duro, expressão que remete a traição. Falar, para o estamento, não é nobre.
E o contrário também é válido: a maioria de nós médicos, professores e jornalistas, e também pedreiros, motoristas e gerentes de vendas, não dormiria bem fazendo coisas que para o estamento são corriqueiras, como jogar a meritocracia no lixo. Pois a maioria de nós depende de profissionais competentes para fazer um bom trabalho. De que adianta uma arquiteta contratar um marceneiro inábil, por exemplo, ou um gerente um vendedor analfabeto? Seja por norma profissional, seja por atenção ao mercado, queremos apresentar um trabalho bem feito. Já numa instituição gerida pelo estamento, contratar um imbecil pode render uma útil gratidão sem qualquer ônus e até angariar o respeito dos colegas, pela generosidade demonstrada.
Essa lógica distinta às vezes se expressa verbalmente, mas em geral se esconde debaixo do manto protetor da própria ordem estamental. “Este não é um projeto do governo, é da sociedade”, disse um líder político sobre a Lei da Ficha Limpa, justificando seu empenho em outro projeto. Trabalhando numa universidade pública, teria exemplos adicionais para dar, mas o leitor deve ter os seus também. Não estou falando de delitos ou da corrupção, exageros que ferem também o brio do burocrata padrão, honesto, que pertencendo a esse estamento enxerga os problemas através da ótica de sua manutenção e não da atividade-fim para a qual, em última instância, foi contratado.
Quanto aos objetivos, o estamento não quer dominar ninguém, nem com a repressão crua nem com a ideologia; por isso os questionamentos racionais a ele são sempre fúteis e as lutas democráticas apenas provisórias. O Estado patrimonialista quer da sociedade que esta produza o tanto que ele precisa, apenas isso – ao contrário do Estado americano, por exemplo, que precisa da sociedade pujante para manter sua hegemonia global, ou do Estado totalitário que goza diante da multidão submissa. Se o estamento percebe que sufoca muito a criatividade social, é hora de soltar as rédeas; se solta demais a sociedade, arrisca perdê-la de vez e tornar-se mero servidor público. Dito assim, o patrimonialismo brasileiro se parece com nossas relações de gênero: nem muito livres, nem tão ruins assim…
Na última década, o volume de recursos em poder do Estado aumentou muito, seja pelo crescimento da economia ou pelo aumento na taxa de arrecadação. Comandando esse maior volume de recursos, aquele sentimento autárquico, auto-suficiente, que é próprio do estamento, se exacerbou. Ele passou a não enxergar mais a cerca da própria fazenda, passou a ignorar os limites já amplos que a sociedade sempre respeitou. O séquito de assessores e subordinados que essa nova afluência permite, junto com as dezenas de empresas contratadas sem fiscalização pública, formaram um colchão protetor entre governo e sociedade. Tiraram dos governantes o contato com aquilo que os cidadãos comuns se deparam o tempo todo: o cliente exigente, o aluno que reclama da aula, o paciente que não responde ao tratamento. Com a realidade, enfim. A mídia tradicional, crucial na investigação dos piores escândalos de corrupção, porém muitas vezes se resignando a cobrir pequenas escaramuças intra-estamentais, acabou engrossando esse colchão protetor ao invés de colocar-se como verdadeiro canal de diálogo entre Estado e sociedade. A política aparece nos jornais como um jogo de futebol, cheio de táticas e grandes jogadas, onde a população é apenas uma torcida animada.
Ao mesmo tempo que aumentava, esse abismo se tornou mais visível. A elevação do nível de instrução do brasileiro, a exposição a novas formas de organização social, por conta da globalização, e a maior capacidade de debate, possibilitada pelos novos meios de comunicação, deram lugar a um cidadão mais curioso, crítico e ativo. Além disso, a pressão pela transparência, vinda dos novos hábitos de pesquisa que chegaram com a internet, e também de pressões sociais articuladas, também ajudaram a revelar as entranhas do Estado, seja quando essa pressão funciona, seja quando ela não funciona e nos deparamos com os mecanismos de proteção estamentais.
Os novos meios de comunicação entraram nos protestos das últimas semanas não apenas na organização do movimento. No plano da experiência, das percepções sobre o atual estado das coisas, eles foram fundamentais, dando sentido à insatisfação cotidiana dos ônibus lentos, da inflação e do crime. Pudemos ver na internet, ao longo dos últimos anos, o tamanho do fosso mental que separa Estado e sociedade no Brasil. Nos meios de comunicação tradicionais, davam-nos números, imagens. Gastos. Obras inacabadas. Ouvíamos também as justificativas pomposas escritas pelas assessorias de imprensa, que descartávamos sem refletir. Mas não ficava claro o porquê da ineficiência governamental.
Já nas redes sociais, vemos quem são e como pensam essas pessoas que enxugam um terço da renda nacional. Como diz Hannah Arendt, no espaço público as pessoas se revelam. É difícil para os homens públicos, na interação cotidiana do Twitter, deixar de dizer como enxergam a realidade e entendem seu papel no mundo. Os pequenos rancores partidários, a vaidade e principalmente o descaso pelas tarefas públicas que os cidadãos consideram mais urgentes nos são jogados na cara a cada vez que interagimos com os governantes nesse ambiente mediado em que eles entram bem a contragosto. Os efeitos do Estado patrimonialista, que sofremos no cotidiano e comprovamos na tela de televisão, são finalmente explicados por modos de pensar que podem ser criticados, julgados, condenados. O Twitter puxou o véu do estamento, e não gostamos muito do rosto que vimos debaixo dele.
Sobre os protestos das últimas semanas, está claro que é um movimento fluido e descentralizado como as formas comunicativas nas quais se apóia. As nossas simpatias podem atrair o movimento para um lado ou para o outro, mas elas não o descrevem objetivamente; só a ação política de todos nós dará em algum lugar. O silêncio dos líderes políticos que não foram constrangidos por seus cargos a se posicionar diz muito: estão esperando pra ver onde a maré vai levar, que riscos correm e que benefícios podem obter. É possível que haja alguns genuinamente preocupados com as consequências dos protestos e buscando propor caminhos de diálogo duradouros. É possível que eles também finalmente tenham se dado conta do abismo que criaram.
Pode ser que esse movimento traga mudanças para a política nacional, com uma nova leva de candidatos e até de eleitores, finalmente conscientes do poder do voto. Ou que a estrutura atual se abra, com maior transparência e novas concepções de cidadania e serviço público. Esse é nosso desejo. Pode ser que as estruturas atuais se fechem, e esse ou outros movimentos se reforcem, causando paralizações na economia e consequentemente sérios desafios para a democracia brasileira. Ou que as estruturas não resistam, pois não há clima para defender um Estado desgastado, mesmo que no fundo todos nós saibamos que há muito a ser preservado no status quo. Esse é nosso temor. Mas o que vai acontecer mesmo, cá entre nós, é que o estamento brasileiro mais uma vez vai nos engolir a todos, absorvendo o Movimento pelo Passe Livre assim como fez com a industrialização e até com a Contracultura, tarefas imensamente mais difíceis das quais ele se desincumbiu tão bem. Ou não.
Heloisa Pait é professora de sociologia da UNESP e membro do conselho consultivo da Open Knowledge Foundation-Brasil.