Nos dias 24 e 25 de março participei dos workshops de dados abertos patrocinados pelo governo britânico e governo do Estado de S. Paulo, um mais voltado para o pessoal que trabalha no governo e outro um pouco mais conceitual. Os dois foram oportunidades excepcionais para aprender, conhecer gente e compreender melhor os desafios para a transparência governamental hoje no Brasil. Queria já no começo agradecer ao Everton por ter me indicado para participar representando a Open Knowledge Brasil; havia outros membros lá, representando outras organizações: Marco Túlio, Gisele e Yaso.
É um projeto grande, que envolve várias etapas, veja essa notícia. Parece que no dia anterior os representantes britânicos estiveram com o alto escalão do governo. Eu fiquei bem entusiasmada, achei tudo muito sério, e vi muita disposição dos funcionários que estavam lá em tocar para frente essa iniciativa. Claro que a gente sempre se pergunta: por que só agora? O que exatamente os governos estavam esperando para mergulhar na transparência e abrir dados?
Talvez a questão agora esteja aparecendo como necessidade para governos democráticos e eficientes, e não apenas como um serviço a mais ao cidadão. No Brasil, graças à nossa herança patrimonialista, a necessidade dos Estados são sempre mais prementes que a vontade dos cidadãos. Então a explicação pode ser essa. Achei a contribuição da Eleanor Stewart fantástica. Ela é a head of transparency in the digital transformation unit of the British Foreign Office. Clara e paciente, descortinando a luta que é se manter no número 1 do ranking de governo aberto no mundo. Ah, aproveito para agradecer à equipe do consulado britânico pela acolhida.
Pela narrativa da Eleanor, senti que muitos de nossos problemas são comuns a todos os governos: tem gente ciosa das informações que têm, sem compreender muito bem o que essas informações podem beneficiar ao público ou ao próprio gestor. Ou seja, há questões que são universais para os governos que desejam abrir dados. Mas, no transcorrer das discussões, alguns poréns foram aparecendo no debate. Era preciso abrir mas devagar, mas sabendo o que abrir e por quê, mas com dados muito tratados, e coisa e tal. Todas ponderações razoáveis, mas a certa altura, lá para o final do dia, Eleanor disse: “Se vocês forem buscar razões para não abrir, não vão abrir nunca. Abram os dados. Simplesmente abram.”
Aí eu entendi alguma coisa. Criar uma série de obstáculos, ou, dito eufemisticamente, critérios para a abertura, é um modo de manter o controle sobre os dados. Parte do princípio de que o Estado sabe o que a sociedade precisa saber. Ou seja, é uma adaptação contemporânea da nossa velha noção de tutela estatal. Claro, open data. Claro, transparency. Claro, best practices. Mas dirigidos por quem, e para quê? A idéia de que se deve abrir por abrir, simplesmente por isso, não é algo que adotamos naturalmente. E isso não é por maquiavelismo. A idéia do dado aberto “desde que”, digamos, eu me dei conta ao final dos dois dias, aparecia nas falas de gente que discordava disso, de gente que concordava e de gente que não tinha a questão clara. Todos de boa fé, sem exceção.
Vamos admitir uma coisa, gente, uma participante falou. Só temos dados de coisas que interessam às pessoas. Há dados de óbito no país pois você precisa desse atestado para mil coisas. E não há dados para o resto pois não temos a cultura dos dados. Ou seja, eu concluo, a transparência pode até ser algo geral, universal. Mas ela aparece para cada cultura de um modo particular, de um modo especial. Podemos negar isso, admitir isso e nos resignar ou então admitir isso e buscar transformar nossa cultura de dados. Ou seja, temos várias opções. Claro que, liberal como sou, quero o “just open it”. Se é público, deve ser aberto. Mas e a realidade de nossas repartições?
Perguntei ao representante do Metrô por que não usar como piloto os dados de transporte diário do bilhete único. O piloto deles era um pouco tímido, abrir uma pesquisa de origem-destino feita a cada decênio. Ele disse que os dados diários não são só do Metrô, são da SPTrans, da CPTM. E me vi no papel dele, tendo que falar com os Tatto, com sei lá mais quem. Não é fácil. O legal do primeiro dia foi isso, poder ver na prática as possibilidades de abertura nos vários órgãos públicos, falar com as pessoas que trabalham nas secretarias!
Eu acredito que seja preciso manter o ideal liberal e os pés no chão. Não sei como fazer isso exatamente, mas a linha é essa. Sou contra abrir mão do ideal. É preciso ter claro que o dado é público, então deve ser aberto. Ponto. Claro que no fazer político, é preciso convencimento, planejamento e bom senso. Mas a meta deve ser a abertura. A idéia de fazer da prática em torno dos dados abertos mais um mediador entre cidadão e Estado me assusta: mais um grupo de interesse, mais um atravessador, mais um cartório, mais um despachante. Não. A idéia é aproximar, e não criar colchões. Pontes, não catracas.
Claro que alguém deve tomar a iniciativa pelos dados abertos, e nós da OKBr somos parte disso. Mas devemos estar atentos para não entrarmos na lógica patrimonialista, apoiando a criação de mais secretarias, burocracias, grupos conectados ao Estado que hesitam muito, abrem pouco e acabam se constituindo em versões 2.0 do Ministério da Desburocratização do governo Figueiredo, de Hélio Beltrão. Como fazer isso? Como evitar as trapaças de nosso próprio modo de pensar? Não sei fazer, eu só ensino.
Uma coisa que pode evitar esse perigo, e que levantei algumas vezes nas reuniões da OKBr, é trazer o pessoal de negócios para a transparência. Podemos, tanto nós da OKBr como nós envolvidos com o projeto do governo do Estado, favorecer o diálogo entre empreendedores e Estado detentor de dados públicos. Aliás, uma ausência nos workshops foi exatamente o setor privado, e em especial jovens interessados em abrir novos negócios. Pois esses jovens podem se constituir num grupo de pressão não-corporativista, com seus objetivos práticos, voltados a resultados. Havia apenas um representante, muito legal!, de grandes empresas da internet.
Quais os desafios que empresas de tecnologia hoje encontram no Brasil, potenciais usuários de dados governamentais? Formato ou publicidade dos próprios dados? Burocracias que todos os empreendedores enfrentam? Impostos? Incerteza jurídica quanto ao uso dos dados? Deixar a iniciativa de abertura de dados apenas com governos é um pouco como tentar se levantar puxando os cabelos. Nós, das ONGs e universidades, podemos colocar certas pautas na discussão, mas também temos nossas limitações. É hora de sentar com jovens empreendedores e perguntar: o que você precisa para poder trabalhar com dados governamentais?