Dados abertos para a promoção da equidade de gênero

29 jan de 2025, por OKBR

Compartilhar

Como assegurar a confiabilidade de dados e garantir a participação de pessoas trans pode ser fundamental para combater a invisibilidade dessa população e orientar políticas públicas para inclusão efetiva

 

Em 2024, 122 pessoas trans e travestis foram assassinadas no Brasil. Houve uma queda de 16% em relação a 2023. Os dados são do Dossiê: Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras, publicado no dia 27 de janeiro de 2025 pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA).

Mesmo com essa queda, o Brasil segue sendo o país que mais mata trans no mundo, segundo o relatório da Transgender Europe (TGEU), divulgado anualmente com um monitoramento dos assassinatos de pessoas trans no mundo. O país mantém essa posição desde que o estudo começou a ser divulgado em 2008.

Ambos os levantamentos são realizados por organizações que trabalham com esse tema – o que evidencia uma falta de dados oficiais não somente sobre a violência contra trans, mas sobre demais informações a respeito dessa comunidade.

 

Quando o Estado sabe pouco sobre sua população

“Esse trabalho quantitativo realizado há anos pela ANTRA mostra que quem tem esse conhecimento não é o governo, são as pessoas que lutam pela garantia de seus direitos. Até hoje, dados sobre transfobia não possuem um padrão de registro nas delegacias dos municípios, e é um desafio imenso mensurar isso, sem contar com a subnotificação de casos”, explica Caê Vatiero, jornalista transmasculino e diretor institucional da Transmídia, primeiro portal de notícias a cobrir as pautas trans no Brasil.

Para Veronyka Gimenes, programadora, hacker e fundadora da rede Código Não Binário, a população trans se encontra em uma situação de apagamento, sendo invisibilizada em levantamentos oficiais. “É vergonhosa ainda a total ausência de campos corretos sobre gênero, principalmente em formulários públicos, o que dificulta a identificação e a criação de políticas públicas eficazes”, afirma.

Ela cita como exemplos o fato de que pessoas não binárias não têm direito ao registro civil correto de sua identidade de gênero em todo território nacional, apenas em alguns estados, e a Resolução 11/2014 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação LGBT (CNCD/LGBT), que determinou que os formulários de B.O. tivessem campos de orientação sexual, gênero e nome social. “Na prática não há obrigatoriedade de preenchimento pela autoridade policial, o que transforma os dados em não confiáveis. Sem dados precisos sobre nossa população, nossas demandas não são reconhecidas, e isso perpetua ciclos de exclusão”, completa.

 

Reconhecimento da dura realidade

Caê reconhece que, nos últimos anos, houve avanços na coleta e divulgação de dados sobre a população trans, como nas bases do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Mas julga que faltam dados qualificados que represente, de fato, toda a diversidade de gênero, raça e território existente dentro da própria comunidade trans. 

“Incluir uma opção ‘transgênero’, além de ‘masculino’ e ‘feminino’, não é o suficiente para realizar uma pesquisa ou apontar caminhos para a elaboração de um censo nacional sobre saúde, educação, eleições ou qualquer outra temática que seja. O que nós vemos é um Estado que ainda sabe muito pouco sobre nós, e isso impacta diretamente a nossa vida e nossos direitos”, diz. 

O impacto é justamente entender a realidade dura em que a população trans vive. “A maioria das pessoas trans no Brasil está marginalizada, enfrentando altos índices de violência. Cerca de 90% das mulheres trans e travestis, por exemplo, só têm a prostituição como escolha para sobrevivência desde o início, e é ali onde desenvolvem seus afetos, criam seu refúgio e, surpreendentemente, encontram menos exploração e uma remuneração mais digna do que vivemos no mercado de trabalho formal”, alerta Veronika. 

Por isso o papel essencial que dados abertos podem ter na promoção da equidade de gênero. É a partir de informações públicas que podemos comprovar desigualdades que evidenciam as barreiras que a comunidade trans enfrenta em empregabilidade, saúde e educação, dentre outras áreas. 

“Sem números que mostrem quantas pessoas somos, onde estamos e quais são nossas principais dificuldades, as empresas continuam nos tratando como exceção ou nos contratando apenas para cumprir exigências superficiais de diversidade”, diz a programadora. 

“No contexto brasileiro, onde pessoas trans são historicamente marginalizadas, dados desagregados são essenciais para orientar políticas públicas que dialoguem com essa realidade. Além disso, ao torná-los acessíveis, é possível monitorar avanços, combater a desinformação e amplificar a garantia por direitos”, explica Caê. 

 

Participação na construção de processos

Tanto Caê quanto Veronyka acreditam que a participação ativa da comunidade trans na coleta e produção de dados e de pesquisas oficiais é fundamental para garantir a sua qualidade e confiabilidade.

De sua experiência trabalhando em governo, Veronyka percebe que a falta de qualidade passa primeiramente pela ausência de pessoas capacitadas para criação, manutenção e desenvolvimento de serviços digitais de governo. 

Mas, para que a capacitação e a construção de processos que respeitem e representem as especificidades da população trans sejam efetivas, é imprescindível a participação ativa de pessoas dessa comunidade, de forma a desenvolver metodologias que evitem generalizações e reforcem a diversidade de gênero, raça e território. 

“Quando falamos da população trans e não binária, muitas informações são coletadas sem qualquer diálogo conosco, reforçando estereótipos e invisibilizando nossa realidade. Precisamos de curadoria feita por pessoas que conhecem a complexidade das nossas vivências para assegurar que os dados sejam precisos e sirvam para nos proteger”, explica Veronyka. 

Caê chama atenção ainda para a atualização regular dos dados, considerando que as condições de vulnerabilidade enfrentadas pelas pessoas trans estão em constante transformação, e para a sua padronização, que deve priorizar formatos acessíveis e éticos.

 

Oportunidades reais e efetivas

Se é imperiosa a participação de pessoas trans na produção de dados, então é necessário que elas enxerguem essa área como uma oportunidade acessível. Ainda que o mercado de trabalho tenha se aberto nos últimos anos para programas de diversidade, fomentando o ingresso de populações minoritárias como a comunidade LGBTQIA+, os empregos ainda são precários e os ambientes hostis, com casos de discriminação e preconceito.

Segundo Veronyka, as oportunidades devem ser abertas em conjunto com outras ações, como a construção de redes de apoio, a valorização de iniciativas lideradas por pessoas trans (que já têm experiência em criar soluções de inclusão real), e a criação de ambientes seguros, com mentorias específicas, programas de inclusão contínua e políticas de retenção, que garantam o desenvolvimento e permanência das pessoas trans.

“Historicamente, a população trans foi afastada desses espaços (além do preconceito, falta de formação adequada, ausência de referências trans nesses campos etc). Precisamos de políticas públicas que não se limitem à capacitação técnica, mas que também ofereçam suporte social, psicológico e financeiro para que essa população possa entrar e se manter nesses espaços”, acrescenta Veronyka. 

Para o jornalista Caê, “a mudança acontece a partir do momento em que homens trans, transmasculinos, não binários, travestis e mulheres trans ocupem espaços de liderança e poder, seja em uma empresa ou na elaboração de políticas públicas. Isso faz toda a diferença”.