Por Heloisa Pait*
No passado, o direito ao esquecimento era garantido pelo trânsito. Longas viagens, às vezes oceânicas, garantiam que nossa vida pregressa desse espaço a novas identidades civis ou religiosas. Como cidadãos das Américas que somos, a maioria de nós descende de homens e mulheres que, aportando em nossa costa generosa, deixaram para trás marcos de suas vidas que só lhes trariam problemas. Meu avô Miguel, por exemplo, tornou-se cidadão mineiro obtendo uma certidão de nascimento de Uberaba, distante 10 mil quilômetros de sua cidade natal Brichon. Converse com seus avós e ouvirá histórias parecidas…
Hoje, a internet mantém a memória como o papel e ainda a leva a lugares inimagináveis. O gentil escrivão, a quem homenageio humildemente nesse texto, que autenticou a certidão de nascimento de meu avô paterno não teria a desculpa de não saber, com a internet ao seu alcance, que o bessarábio à sua frente era natural da Romênia. Talvez depois disso o jovem tivesse que voltar à sua terra natal, onde catástrofes maiores que a burocracia nacional o aguardavam. Mas ele ficou, pode conhecer minha avó e, daí por diante, vocês podem imaginar o que houve.
Legalmente, ainda nos tempos bíblicos, formalizaram-se períodos em que dívidas e obrigações eram esquecidas, o que indica que esquecer sempre teve um lugar relevante em nossa ordem social. Há várias situações onde o passado se fecha a sete chaves. A mais conhecida delas é a dos crimes juvenis, que são apagados de registros oficiais depois que o jovem acerta as contas com a justiça. Não fazer isso seria condenar um menor a uma vida estigmatizada. Cada Estado tem sua forma de lidar com o passado dos cidadãos que se chocaram com ele, anistiando crimes ou suprimindo sua memória. Isso também pode ser questionado, como nas tentativas de revogar a Lei de Anistia no Brasil ou de aprovar a anistia ao caixa 2 eleitoral. O que lembramos? O que esquecemos? O que relevamos? Cabe a cada sociedade decidir, democraticamente, a partir de seus valores e ideias.
Já a luta atual pelo direito ao esquecimento busca resguardar a história do indivíduo do acesso público e amplo (e não seus atos dos braços do Estado), dada a profunda penetração da internet em todas as áreas da vida humana. Estando ao alcance de todos, informações pessoais nos perseguem mesmo quando cruzamos oceanos e nos deparamos com gente que nunca antes nos viu ou ouviu. Uma leitura rápida no artigo sobre essa questão na Wikipédia mostra a complexidade do tema, onde se chocam o direito à informação e à privacidade do cidadão. Nesse caso, o Estado é apenas mediador desta relação, feita por canais de comunicação privados.
Inúmeras batalhas jurídicas se desenrolam atualmente, até mesmo nos Estados Unidos, onde a liberdade de expressão tende a pesar sempre mais na balança. Uma delas, sobre o direito ao esquecimento na França, contestado pelo Google, é descrita nesse artigo e atualizada nesse. O direito ao esquecimento se restringe às fronteiras nacionais? Que tipo de informação pode ser coberta por esse direito? Quem decide e é responsável por essa privacidade temporal? Não vejo resposta fácil ou óbvia. Um homem público pode ter direito de apagar o rastro que seus mandatos anteriores deixaram na rede? Não parece razoável. Que dizer de um homem de negócios e suas falências passadas? Já soa mais ambíguo.
Que dizer sobre acusações falsas de um governo ditatorial a refugiados políticos? Aí já começamos a simpatizar com os que querem limitar o acesso ao que se diz sobre eles, como provavelmente o faríamos com mulheres em relação a sua vida pessoal pregressa. Os críticos do direito ao esquecimento apontam que ele abre uma brecha para que empresas inidôneas apaguem seus rastros e, pior ainda, governos autoritários se blindem de críticas indesejadas. Ignoradas as fronteiras nacionais, essa blindagem global poderia se converter numa verdadeira censura, segundo os críticos. O pano de fundo destas batalhas são as diferentes ênfases aos direitos: ao direito individual à sua própria história e ao direito difuso que todos os cidadãos têm de se informarem. Trata-se de um dilema complexo que terá apenas solução provisória, sempre questionada nos tribunais.
Parece-me um assunto intrincado, mas natural num mundo de informação abundante, cujas melhores respostas virão do exame de casos concretos, formando uma jurisdição relativamente racional e aceita globalmente, apesar das diferenças culturais. O direito ao esquecimento não me parece uma questão política, no sentido de que as respostas dadas pelos tribunais não têm, pelo que compreendi, poder para reforçar ou ameaçar democracias nacionais. Quando olhamos hoje ao redor do globo, com a catástrofe da Síria, o colapso social na Venezuela, o autoritarismo crescente na Turquia, as graves suspeitas que pairam sobre as eleições americanas, os desafios da União Européia que, com todos os seus problemas, tem mantido o continente em longa paz, para não falar de nossos próprios problemas domésticos, parece-me que vivemos uma grande crise que exige que resistamos, local e globalmente aos ataques à liberdade e à democracia, já que a inação pode ter sérias consequências.
Onde resistir? Se aqui no Brasil a descrença na democracia vem de um Estado opaco e indiferente ao cidadão, temos que concentrar nossos esforços no reforço à legitimidade das instituições democráticas, aprimorando o diálogo com o cidadão e aumentando a transparência governamental – duas áreas nas quais a internet tem um grande papel. Nosso problema não é o Estado invasivo, detendo muita informação sobre o cidadão, coisa de governos totalitários. Também não é nosso principal drama que pessoas privadas saibam pouco de seus concidadãos, por conta de mecanismos como o direito à privacidade, nem muito, por conta de coletas indevidas de empresas. No Brasil, e provavelmente em toda a América Latina, nosso calcanhar de Aquiles é a relação do Estado com o cidadão, que não tem informações suficientes sobre aquele para organizar decentemente sua vida nem para lhe cobrar ações.
É essa questão que pode ameaçar o funcionamento democrático no Brasil – o divórcio entre Estado e cidadão. E portanto é a essa questão que devemos dedicar nossos esforços. Olhando de longe, acredito que os Estados Unidos (e talvez a Europa também) devam refletir sobre o papel da internet na criação de bolsões de significado impenetráveis, como nos alertou Gilad Lotan em um artigo recente, que parecem ter um efeito muito maior na identidade do país do que se imaginava meses atrás. De qualquer modo, o desafio hoje parece ser o de construir – e rapidamente – pontes para o diálogo que sustenta nossos direitos fundamentais, e não tanto o de delimitar micro-direitos já que, como temos visto, eles podem ruir todos de uma só vez com o pontapé de um governante alucinado.
Voltando às histórias de família, meu bisavô materno, ao contrário de meu avô, teve seu pedido de naturalização negado pela polícia varguista. Há coisas que a gente escolhe não esquecer…
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*Heloisa Pait é Professora de Sociologia da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho e Conselheira Consultiva da Open Knowledge Brasil.