“Duplamente arriscado” é restringir a transparência e tratar acesso a dados públicos como negócio; leia o posicionamento da Open Knowledge Brasil*
Um artigo disponível no site do Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) e assinado pela Comunicação da empresa pública afirma que o “Acesso robotizado a dados públicos é duplamente arriscado”. O órgão argumenta, resumidamente, que a prática pode prejudicar a prestação de serviços ao cidadão e resultar no fornecimento de informações “desatualizadas ou inconsistentes”. Longe de ser apenas retórica, a prática de impedir acesso automatizado é recorrente em sites de órgãos ou empresas estatais que abrigam informações públicas fundamentais, como, por exemplo, o Licitações-e, do Banco do Brasil.
Entretanto, considerando a missão e os valores da Open Knowledge Brasil, não é possível deixar de se manifestar institucionalmente a respeito dos diversos deslizes e contradições existentes na manifestação do Serpro — texto que, infelizmente, vem sendo replicado por outros órgãos públicos, inclusive do Poder Judiciário, que deveria ser a primeira linha de defesa do amplo acesso à informação.
Em primeiro lugar, desde 18 de novembro de 2011, o acesso automatizado a dados públicos está previsto em lei e é direito do cidadão. A Lei de Acesso à Informação (LAI) – afirma categoricamente que é requisito dos sítios eletrônicos de órgãos e entidades públicos “possibilitar o acesso automatizado por sistemas externos em formatos abertos, estruturados e legíveis por máquina” (art. 8, §3º, III). Esse direito é inclusive reforçado pelo Marco Civil da Internet, que desde 2014 afirma que as aplicações de internet de entes públicos devem buscar “compatibilidade tanto com a leitura humana quanto com o tratamento automatizado das informações” (art. 25, III).
Em segundo lugar, o Tribunal de Contas da União em diversas ocasiões já afirmou a importância e relevância de dados abertos não apenas para assegurar a transparência pública e controle social, mas também permitir a inovação e desenvolvimento de novas tecnologias. Ilustrativamente, é possível referir os acórdãos 2.569/2014, 228/2015, 3.022/2015, 2.904/2016, 1.178/2018, 1.832/2018, 1.855/2018, 1.943/2018 e 2.512/2018, entre outros.
Em terceiro lugar, em vez de publicar artigos fomentando incertezas quanto ao exercício regular de direito por cidadãos e cobrar somas astronômicas para o acesso a informações públicas (cuja composição de preço inclusive já foi considerada pouco transparente pelo TCU), o Serpro poderia engajar em atualizar e desenvolver sistemas e aplicações conforme a LAI, nos quais a transparência seja regra de negócio (transparency by design). Certamente, desenvolver softwares sem a consulta e participação efetiva do usuário não só é uma prática ultrapassada como, especialmente no caso do Serpro, contrária aos princípios de governo aberto. O que se faz, aqui, é ainda mais controverso: o cidadão não só deixa de ser envolvido, como há tentativa de responsabilizar pessoas e organizações por tentarem contornar um serviço público de baixa qualidade.
Seja como cidadãos, pesquisadores, eleitores ou empreendedores, brasileiros precisam ter acesso a dados e informações públicas, não apenas porque isso é seu direito, mas porque isso é fundamental na sociedade em que vivemos para que tenhamos condições de tomar decisões de forma adequada.
Ninguém investe tempo desenvolvendo softwares para buscar dados e informações em sites públicos (“robôs”) por mera diversão. Isso ocorre porque, de outro modo, essas informações ficariam inacessíveis, quer em razão de preço elevado e não transparente, quer devido ao uso indevido de captchas ou mecanismos similares para injustificadamente dificultar o acesso a dados públicos.
Para que seja efetivamente percebida como uma instituição pública pela sociedade brasileira, não basta que o Serpro afirme isso unilateralmente, mas sim adote a transparência como princípio fundamental de suas atividades. Experiências exitosas no Brasil e no mundo já demonstraram que, quando o governo adota o paradigma da abertura e da colaboração com a sociedade, todos saem ganhando: há mais eficiência, maior confiança das partes envolvidas, melhoria na entrega de serviços públicos.
O Brasil caminha para construir seu quinto Plano de Ação no âmbito da Parceria para Governo Aberto (OGP) em 2021 e tem a oportunidade de retomar a qualificação da Infraestrutura Nacional de Dados Abertos (INDA), para que o governo se posicione, cada vez mais, como plataforma de inovação. Como operador e guardião de parte relevante dessa infraestrutura digital, o Serpro tem papel estratégico nesse cenário. O país precisa de uma liderança técnica que se dedique a esse importante desafio, e não ao triste papel de impor mais barreiras à informação pública, já tão cheia de restrições.
*O artigo foi construído de forma colaborativa por integrantes da equipe, associados e colaboradores da rede, em especial: Ana Paula Gomes, Bruno Morassutti, Eduardo Cuducos, Fernanda Campagnucci e Mário Sérgio Queiroz.