O inevitável futuro da democracia aberta, mediada por bots e emojis

09 jul de 2016, por OKBR

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Por Yasodara Córdova*

Acesso às informações que o Estado coleta, gera, guarda e distribui.
Esse é um anseio antigo de quem busca transformar o Estado e suas representações em ferramentas colaborativas de distribuição de recursos, no sentido de gerar uma sociedade mais justa e menos desigual. Nos últimos vinte anos, a internet trouxe a esperança de que o uso de plataformas digitais pudesse ajudar a alcançar esses anseios, porque estas plataformas, além de interconectadas, são abertas e podem se fragmentar para serem utilizadas por organizações, entidades e até indivíduos. O conceito da informação livre para empoderar quem está à margem da sociedade ganha impulso cada vez que pequenas revoluções têm como suporte plataformas como o Twitter ou o Facebook, e a importância da distribuição da informação em nível granular fica cada vez mais evidente.

A partir desses conceitos, a ideia dos dados abertos se conectou com a esperança de que os governos ofereçam mais transparência nas suas ações, ao mesmo tempo em que possam sofrer escrutínio público em suas promessas por parte de um público cada vez mais conectado pela internet. Muitos ativistas, tecnólogos, comunidades e até mesmo políticos se engajaram no que parecia ser a bala de prata para resolver a corrupção, mas que se mostrou sobretudo ineficiente para atingir a maioria da população que, fora dos espaços de ativismo, passa alheia às mudanças importantes como a implementação das leis que facilitam o acesso à informação ou aos sites de dados abertos e seus pacotes em formato .csv.

Em paralelo, o mercado se apruma em torno da entrega e da coleta de dados, mas em formatos que humanos consigam entender para interagir. A internet, “embutida” em objetos, com seu hype “das coisas” implementado de modo invisível, mas constante em gadgets antigos – celulares, aparelhos de som e relógios (e não geladeiras) acaba por criar novas formas de acesso ao que está digitalizado: a informação. Uma das tecnologias que ganhou impulso e desbloqueou a pervasividade da automação foi a Inteligência Artificial somada ao impulso na análise e na mineração de dados. Abertos ou não, tudo o que está digitalizado é dado e é possível de coleta, análise e enriquecimento para ser utilizado como input e output de softwares embarcados em coisas. Desse modo, um monte de assistentes pessoais vem atraindo adeptos e as pessoas começam a fazer amigos imprescindíveis: os bots.

A Siri, assistente pessoal embarcada em alguns hardwares da Apple, tem sua inteligência alimentada pelo upload diário de informações que os humanos produzem com gestos, se comunicando, tirando dúvidas na internet, ouvindo música, malhando, se divertindo com vídeos, comendo, entre outras atividades. Bots silenciosamente intermediam investimentos substituindo consultores caríssimos e plataformas inacessíveis, cobrando o preço em dados do próprio usuário, input valioso para o próprio robô aprender o que deve e o que não deve fazer. Um outro exemplo de automação é a montagem automática de interfaces, que responde também ao input de informações feitas pelo usuário. Ou seja: os bots interpretam grandes volumes de dados e depois devolvem, de modo amigável, em interfaces de voz ou até em formato gráfico, as informações para os humanos.

Os bots são uma chance de fragmentar a informação em um espectro muito necessário, em uma sociedade que vai também ter que fragmentar as responsabilidades se quiser descentralizar o poder que os Estados têm. Os assistentes pessoais podem ser o futuro de uma democracia onde poucos participam e muitos votam, especialmente se ajudarem a informação a chegar onde ela precisa estar: junto às comunidades.

Um cenário interessante de ser observado é o das eleições. Se os candidatos tivessem suas propostas cadastradas em sistemas onde o acompanhamento por etapas fosse possível, pessoas interessadas em acompanhar determinadas promessas poderiam se cadastrar na lista de contatos com seus bots e receber informações diárias de maneira amigável, inclusive por mensagem de voz, sobre o investimento que fizeram votando em determinados candidatos.

Imagine que você votou em um vereador porque ele prometeu construir um campo de futebol na escola do bairro, e que durante todo o mandato o seu bot possa ter acesso às informações de execução de orçamento da obra, só que ao invés de te mandar uma mensagem com valores diários, você possa acordar com uma mensagem de áudio no seu Facebook Messenger dizendo:

“Oie, Márcio! Seu candidato gastou os últimos 10 mil no mês passado no campo de futebol da Escola Municipal onde sua filha estuda. Se tudo der certo, no mês que vem, a obra acaba e ela já vai poder jogar futebol! Quer dar uma ligada para a diretora da escola para verificar se está tudo nos conformes? Se sim, me avise que eu posso marcar uma hora para vocês se falarem, tenha um bom dia! :-D”

Claro, esse filme de ficção só vai ser possível se cada vez mais investimentos forem feitos em tecnologia para distribuição de dados e informações. De nada adiantam leis e regulamentações se a técnica não permitir a interoperabilidade natural entre as plataformas de coleta e distribuição de dados. Clareza na documentação e escolhas certas entre padrões na hora de escolher as interfaces entre entradas e saídas de dados precisam se tornar tão naturais quanto um conjunto de peças para saneamento básico de um bairro. Os governos deveriam, portanto, estar mais preocupados em estudar técnicas para dar sustentabilidade ao streaming contínuo de dados, sempre preservando o direito à liberdade e privacidade do indivíduo.

Outro ponto muito importante são os parâmetros para interoperar dados. APIs e outras interfaces que permitem acesso aos dados que entidades do Estado coletam deveriam estar abertas. Dados em nuvem deveriam estar disponíveis em estado bruto e estruturado. De nada adianta abrir pacotes em determinado ano se o fluxo não é obrigatoriamente contínuo e confiável. A preservação das séries históricas para comparação é peça-chave, por exemplo, do estudo das informações de ações de governo. Em um estado avançado de dados abertos, até os instrumentos de coleta deveriam ser abertos, sejam eles relógios ou questionários de satisfação com serviços de saúde.

Há diversos fatores que poderiam ser citados quando automação e inteligência artificial são postos na mesa no cenário da transparência e prestação de contas, bem como acompanhamento de ações de políticos. O acesso à internet, aos serviços, ou até mesmo aos aparelhos de celular, por exemplo, são gargalos que poderiam ser devidamente endereçados pelo uso de bots em determinadas situações.

A internet das coisas (inteligentes) funciona com novos paradigmas de interação e algumas mudanças profundas no modo como nos comportamos em sociedade. A ideia é preservar o ser humano e melhorar o modo como distribuímos responsabilidades e recursos, mas para que isso aconteça de modo universal e não apenas para os que podem pagar, a democracia mediada por bots precisa vir apoiada em tecnologias abertas, por comunidades que pensem na experiência do cidadão enquanto parte da tecnologia que estamos construindo.

Para substituir o governo por bots é preciso que o governo queira ser substituído.
😉


Yasodara Córdova é Conselheira Consultiva da Open Knowledge Brasil. Conhecida como “Yaso”, trabalha para o escritório da W3C Brasil. Atuou como UX e UI Designer para a UNESCO, em projetos pensados para usar a tecnologia para promover a cidadania. Também já trabalhou com jornalismo multimídia e visualização, fazendo parte da equipe que ganhou dois Prêmios Vladimir Herzog na categoria Internet seguidos (em 2008 e 2009). Hoje tem como principal atividade liderar processos e produtos que estimulem, através do Design, a mudança de paradigmas em ambientes tradicionais.
Contato: yaso@okfn.org.br