Seguindo a série de conversas com gestores sobre a abertura de dados da Covid-19, a OKBR entrevistou a então coordenadora do Comitê de Dados do Gabinete de Crise e ex-Secretária do Planejamento, Orçamento e Gestão do Rio Grande do Sul, Leany Lemos.
Na primeira fase do Índice de Transparência da Covid-19 (ITC-19), o Rio Grande do Sul apresentou desempenho “Médio” de transparência na maior parte do tempo e chegou a ter a opacidade criticada pela imprensa regional. Foi apenas na nona avaliação, em maio, que o estado atingiu um mínimo “Bom”, chegando ao primeiro lugar na última rodada com pontuação máxima. Na segunda fase do ITC-19, iniciada em julho, o estado manteve um desempenho “Alto”, oscilando entre as primeiras colocações do ranking.
Gráfico – ITC-19 1.0:
Gráfico – ITC-19 2.0:
Para falar sobre as estratégias e os desafios envolvidos na transparência sobre a pandemia no estado, a Open Knowledge Brasil (OKBR) convidou a então coordenadora do Comitê de Dados do Gabinete de Crise do Governo, Leany Lemos. À época de criação do Comitê, era também secretária de Planejamento, Orçamento e Gestão no estado, cargo que ocupou do início de 2019 a junho de 2020. Mestre em Ciência Política e doutora em Estudos Comparativos das Américas pela Universidade de Brasília (UnB), com pós-doutorado no programa Oxford-Princeton Global Leaders, ela deixou a coordenação do Comitê em dezembro para assumir a direção do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE). Será a primeira vez que a instituição terá uma mulher no comando, assim como foi com a Secretaria de Planejamento, Orçamento e Gestão. A entrevista foi realizada em 23 de outubro.
Ao iniciar a conversa, Leany falou sobre os desafios de estar à frente da Secretaria e do Comitê nesse contexto atípico: “Estamos acostumados na gestão pública a trabalhar com stress, com situações críticas. Quando fui chamada para ser secretária de Planejamento do Rio Grande do Sul, eu sabia que vinha para um estado com problemas fiscais, que tem uma agenda de reformas estruturantes, de privatização, que demandaria muito diálogo com diferentes setores e stakeholders. Mas uma pandemia foi algo de outra ordem”.
A ex-secretária também ressaltou os avanços e o legado de transparência que esse processo deixou para a área de saúde. Ela destacou a melhoria de ferramentas existentes, além da criação de novas, como painéis, que passaram a ser prioridade. “Os dados da saúde e as bases melhoraram sensivelmente”. Confira a entrevista:
OKBR – Como foi estruturado o início da gestão da pandemia no Rio Grande do Sul?
Leany Lemos – Logo no início, o governador compreendeu que não daria para tomar decisões sozinho, e criou uma governança para que ele pudesse ser amparado por diversas estruturas diferentes.
Foi criado um “Conselhão”, com participação de outros Poderes, da Academia, de sindicatos, e com ampla representatividade. Também criamos um Gabinete de Crise, que tem o governador, o vice, secretários do núcleo do governo (Fazenda, Planejamento, Casa Civil, Governança), mas também representantes de áreas sociais, como a Saúde. A de Cidades também, pela necessidade de se articular com os municípios
Também foram criados vários comitês. Um Comitê de Logística, importante no início da pandemia porque recebíamos muitas doações e não tínhamos capacidade instalada para fazer a distribuição. Um Comitê Econômico, para discutir os impactos na economia e pensar em saídas. Um Comitê Científico, coordenado pelo secretário de Ciência e Tecnologia. E o Comitê de Dados.
OKBR – Como foi identificada a necessidade específica de criar um Comitê de Dados?
Leany Lemos – O Comitê de Dados ficou sob coordenação da Secretaria de Planejamento porque antes mesmo do lockdown já estávamos trabalhando com cenários e com o que iria acontecer com o Rio Grande do Sul no contexto da pandemia, com apoio do Departamento de Economia e Estatística e de vários especialistas que temos na secretaria. Então, o Comitê de Dados foi responsável por elaborar esse modelo do distanciamento controlado, em que a gente regionalizou o estado, acompanhou semanalmente e usamos cores para identificar risco, com um conjunto de protocolos correspondentes. E foi o Comitê que elaborou esse sistema e essa operacionalização.
Eu já havia coordenado uma transição de governo e feito um processo semelhante, que na verdade nada mais é que coletar informação, discutir informação e subir essa informação para um Gabinete ou uma governança superior. Então criamos Grupos de Trabalho (GTs) para gerar dados e informações e, mais do que isso, gerar análises para que o Governo pudesse tomar decisões a partir de estudos, de análises. Cada GT tem um coordenador e os diferentes especialistas produzem os estudos, alguns propostos por eles e outros demandados pelo Gabinete.
OKBR – Quem compõe esses GTs que fazem parte do Comitê de Dados?
Leany Lemos – São técnicos do governo de várias secretarias. Há um GT de Políticas Sociais e Educação com pessoas da Assistência Social, da Secretaria de Trabalho, da Cidadania, Saúde, Planejamento. Há também um GT de Infraestrutura com pessoas das empresas de energia, água, e gás do estado, Secretarias do Meio Ambiente, de Estradas, as empresas que controlam pedágios e outras empresas privadas. Então, é transversal ao governo e conta com a participação de agentes externos, voluntários, pessoas de fora, universidades. São 40 instituições e cerca de 120 pessoas que participam do Comitê.
Fizemos uma matriz de risco que não era só sobre as questões sanitária e econômica. Monitoramos diversos indicadores em frequência diária, semanal e mensal. Olhamos o todo. Por exemplo, qual era o risco de falta de luz, falta de água, de telecomunicações. Quais eram os riscos de rebelião em presídios, de não ter onde enterrar as pessoas, enfim, isso tudo que vimos em outros países, trouxemos para uma matriz de risco. A partir daí, desenhamos objetivos para esses GTs e eles trabalharam muito em coletas de dados, análises e subsídios para o Gabinete de Crise.
OKBR – Como essa produção e análise de dados tão ampla se articula com a transparência no contexto do Comitê de Dados? E a comunicação de tantas informações “para fora”?
Leany Lemos – Desde o início trabalhamos com o princípio de que tudo tem que ser aberto, tem que ser compartilhado. Então, logo quando a gente foi fazer o site do distanciamento controlado, eu dizia “não adianta colocar PDF, tem que colocar dado bruto”. Está tudo lá, todos os dados de hospitalização, variação, e por região, em planilha Excel e com toda metodologia. Tem metodologia, é replicável, é auditável.
Acho que um dos pilares de qualidade da democracia é justamente termos informação pública e de qualidade. Os governos têm muito medo disso, porque têm medo da crítica. ‘Ah, mas se a gente colocar essa informação, vão dizer assim’. O governador sendo uma pessoa mais “arejada” não tem esse medo, mas muita gente do governo tinha. E para tomar as decisões, a gente precisa ter um diagnóstico muito bem feito.
Então, desde o início a gente pensou em publicizar. A única coisa que a gente não publicou com a mesma frequência foi o estudo de projeção de óbitos, porque a própria ferramenta era recente e porque as premissas do modelo ainda são muito questionadas cientificamente e já alteraram muito em seis meses. E aí você está lidando com o medo das pessoas, pode gerar um pânico na sociedade.
OKBR – Quais estratégias foram adotadas para fazer com que os servidores implementassem ações voltadas à transparência?
Leany Lemos – Um decreto! Não havia tempo para conscientização… Mas aí está a beleza da transparência, porque se o governo fizesse isso ‘para dentro’, não iria funcionar nunca. Só que a gente começou a ter essa transparência e uma das críticas era que os hospitais não estavam alimentando os dados. Mas o objetivo era justamente mostrar quais hospitais não estavam alimentando. Especialmente porque a saúde no Estado depende muito de Organizações Sociais (OSs), que recebem recursos públicos e precisam prestar contas. Então houve uma pressão, que criou essa cultura.
OKBR– Quais foram os avanços internos da gestão de dados da pandemia?
Leany Lemos – Um primeiro avanço foi o alinhamento interno. Geralmente, temos na gestão de dados do governo a área de tecnologia e do outro lado, a área finalística, e elas não conversam. Com a pandemia, tinha que colocar todo mundo na mesma mesa e tinha que sair a melhor informação possível, porque dali a gente saberia se estaria salvando vidas ou não.
Um segundo avanço foi a qualidade das ferramentas, as que já existiam e outras que foram criadas. Algumas delas passaram a ser prioridade. Os dashboards da saúde, por exemplo. Os dados da saúde e as bases melhoraram sensivelmente nesse processo.
E o terceiro é essa colaboração externa, a rede colaborativa que se formou. Governo tem muito medo de gente de fora, e gente de fora tem muito medo do governo. Há também um certo desprezo pelo saber do outro, uma oposição entre o governo e a Academia. Mas há muitas possibilidades de cooperação. E a pandemia trouxe esse espírito. No começo isso foi muito difícil no Comitê de Dados, porque havia estatísticos e epidemiologistas que diziam “é assim” e o pessoal da Saúde dizia “não, é assim, porque esse dado não pode ser interpretado dessa forma por conta dessas variáveis”. Isso nos ajudou a compreender os dados.
Vou dar um exemplo sobre internações: quando você olha para o dashboard, você vê toda a hospitalização. Só que tem gente ali que está hospitalizado, mas é de outra região, e ela só está internada ali, seja porque estava viajando, seja porque a regulamentação determinou. Então, na hora de avaliar, não se pode afirmar que região está com mais risco, porque, na verdade, ela recebeu pessoas de outra região.
OKBR – Quais foram as dificuldades?
Leany Lemos – Construir uma boa base de dados, com bons dados. Esse é um desafio tanto na pandemia como fora dela, em qualquer área de conhecimento. Mas acho que avançamos muito.
Outra dificuldade é o desafio de governança, que também já existe no governo e a pandemia maximizou. Ter coordenação, sistemas de decisão que sejam rápidos, baseados em evidências, que sejam claros e que possam ser comunicados para a sociedade.
Não temos ainda internalizado no Brasil boas práticas de governança. Ainda achamos que é perda de tempo se reunir com método para conversar, para discutir. Não é todo mundo que tem sistemas bons de governança, internos, nas secretarias. Temos que aprender que fazer a gestão não é ser reativo e não é responder às demandas. Você precisa de estratégia, ter os seus objetivos e conduzir as equipes quando surgem conflitos.
O desafio de comunicar também é enorme, porque temos que explicar sistemas e informações complexos de forma simples. E em um contexto grande de credibilidade questionada, de desinformação e fake news. No envolvimento dos diferentes atores, e mostrando como estávamos fazendo as coisas, a gente conseguiu demonstrar que havia seriedade no processo.
OKBR – Houve alguma mudança cotidiana a partir da publicação do ITC-19?
Leany Lemos – A questão do Índice é que todo mundo quer estar bem na foto, ser o rei da transparência. Claro, nem todo mundo porque tem governo que não liga para isso, mas nós, sim. Quando saiu o Índice e o Rio Grande do Sul não estava lá na alta transparência, o governador já mandou no WhatsApp “porque a gente não está ganhando?”. Na reunião, já passou quem ficaria responsável por cada coisa. Na verdade, não é que a gente não está sendo transparente, mas os modelos de transparência também estão sendo construídos, tem premissas, variáveis, e a gente às vezes usa outro modelo, é uma questão de se ajustar. Não foi uma mudança no cotidiano, mas uma tentativa de entender e ajustar, para que a gente pudesse também atender a esses padrões.
OKBR – Os processos adotados durante a pandemia vão ter impacto na gestão da informação?
Leany Lemos – A gente nunca sabe, porque governos adoram desfazer o que fazem. Às vezes, avançam muito e depois, por diversas razões, abandonam e voltam para outro conforto. Mas eu gostaria que permanecesse, especialmente os processos de governança internos e essa colaboração com a Academia, com o setor privado e a sociedade civil. É importante que a sociedade entenda como o governo funciona, e, às vezes, como não funciona, e o porquê disso. E também que o governo esteja aberto a essas contribuições.
Antes da crise, um dos projetos estratégicos da Secretaria de Planejamento era algo semelhante ao que fizemos na pandemia: avaliar políticas públicas e produzir estudos, em conjunto com diferentes atores. A ideia era termos foco para auxiliar as secretarias-fim na formulação e definição das políticas públicas e poder publicar dados.
A importância dos dados é fundamental. O que acho bonito nesse processo é que tem um papel pedagógico. A gente faz isso [abrir os dados] e a sociedade passa a demandar aquela informação. Se a gente torna isso regular, o dashboard está lá, e se ocorrer algum problema, alguma desatualização, a sociedade cobra, alguém vai falar.
Eu tenho certeza que isso não vai parar, porque as pessoas vão continuar querendo saber sobre essas informações.