Organizações da sociedade civil e startups de GovTech alertam para os riscos de retrocesso no reúso de dados abertos, caso o dispositivo seja confirmado na Lei. Nota conjunta está sendo encaminhada por meio de ofício à Presidência da República, à Controladoria Geral da União e ao Ministério da Economia nesta quarta-feira, 3/3. Veja a íntegra abaixo.
O Senado Federal aprovou na quinta-feira, 25/2, o PL 317/2021, que traz regras e instrumentos de prestação digital de serviços públicos. O projeto segue para sanção presidencial. Originalmente apresentado em 2017 e votado em dezembro de 2020 na Câmara dos Deputados, o texto final aprovado em ambas as Casas prevê que órgãos e entidades públicos cobrem pelo acesso a dados abertos em caso de “acesso tipicamente corporativo ou institucional, contínuo e com excessiva quantidade de usuários e de requisições simultâneas, com grande volume de dados e com processamento em larga escala” (Art. 29, XII, § 3º).
Além de excessivamente genérico, o dispositivo é contrário ao espírito do próprio Projeto de Lei de Governo Digital em que foi introduzido. Afinal, o texto limita ou mesmo inviabiliza o uso de dados públicos para inovação e projetos de tecnologia cívica. As entidades subscritas a esta nota vêm a público rechaçar este trecho do projeto e pedir seu veto ao Presidente da República, pelos motivos expostos a seguir.
Não é a primeira vez que o tema da cobrança por dados públicos vem à tona. Em 2018, a Receita Federal tentou cobrar somas astronômicas para o acesso a informações públicas sobre o cadastro de empresas, que já deveriam estar disponíveis em formato aberto. Essa tentativa foi barrada pela Controladoria Geral da União, que determinou a disponibilização gratuita e universal dessas informações.
Além disso, o Tribunal de Contas da União (TCU) já considerou pouco transparente a composição de preço do Serpro e da Dataprev, duas empresas públicas que prestam serviços de tecnologia da informação no âmbito federal. Nós defendemos que, em vez de cobrar pelo uso de dados, as empresas ou outros prestadores de serviços e equipes internas se engajem em atualizar e desenvolver sistemas e aplicações conforme a LAI, nos quais a transparência seja regra de negócio (transparency by design). Este aspecto deveria estar em todos os Planejamentos Estratégicos dos órgãos, dado sua relevância para o exercício pleno da cidadania no país.
Desde 18 de novembro de 2011, o acesso automatizado a dados públicos está previsto em lei e é direito do cidadão. A Lei de Acesso à Informação (LAI) – afirma categoricamente que é requisito dos sítios eletrônicos de órgãos e entidades públicos “possibilitar o acesso automatizado por sistemas externos em formatos abertos, estruturados e legíveis por máquina” (art. 8, §3º, III). O mesmo princípio é reafirmado no Decreto Federal nº 8.777/2016 (art. 3º, II, IV). Esse direito é inclusive reforçado pelo Marco Civil da Internet, que desde 2014 afirma que as aplicações de internet de entes públicos devem buscar “compatibilidade tanto com a leitura humana quanto com o tratamento automatizado das informações” (art. 25, III).
O TCU em diversas ocasiões já afirmou a importância e relevância de dados abertos não apenas para assegurar a transparência pública e controle social, mas também permitir a inovação e desenvolvimento de novas tecnologias. Ilustrativamente, é possível referir os acórdãos 2.569/2014, 228/2015, 3.022/2015, 2.904/2016, 1.178/2018, 1.832/2018, 1.855/2018, 1.943/2018 e 2.512/2018, entre outros.
Experiências exitosas no Brasil e no mundo já demonstraram que, quando o governo adota o paradigma da abertura e da colaboração com a sociedade, todos saem ganhando: há mais eficiência, maior confiança das partes envolvidas, melhoria na entrega de serviços públicos. Por outro lado, quando o acesso à informação é cobrado, as pessoas são desencorajadas a solicitá-lo — é o que avaliam especialistas no caso dos Estados Unidos, onde a cobrança é permitida pela lei de acesso à informação (FOIA) e chega a custar centenas de milhares de dólares. A prática pode até causar o efeito contrário: se os órgãos geram receita a partir da indisponibilidade de acesso aberto, não há incentivo para melhorar suas práticas de transparência e de prestação de contas.
O Brasil começou a construir seu quinto Plano de Ação no âmbito da Parceria para Governo Aberto (OGP), iniciativa internacional que objetiva promover práticas governamentais de transparência, integridade, acesso à informação pública e participação social. Além disso, tem a oportunidade de retomar a qualificação da Infraestrutura Nacional de Dados Abertos (INDA), para que o governo se posicione, cada vez mais, como plataforma de inovação.
Já atrasados com relação a outros países, não podemos dar nenhum passo atrás no campo do governo digital. Se mantida a redação, ficam ameaçados importantes projetos de melhoria dos serviços públicos e de controle social e accountability da Administração Pública como a Operação Serenata de Amor, Parlametria, Radar do Câncer/Covid, Brasil.IO, BrasilAPI, Justa, Radar Legislativo, e projetos jornalísticos como O Voto dos Deputados, Elas no Congresso, Basômetro e outros tantos exemplos de tecnologias construídas por meio do consumo automatizado de dados governamentais. Até mesmo atividades de cunho educacional, por exemplo, workshops em grandes eventos como a Campus Party e a Conferência Brasileira de Jornalismo de Dados e Métodos Digitais (Coda.Br), podem ser inviabilizadas com eventual suspensão de uso gratuito Perde, com isso, toda a sociedade, que vê reduzidas suas possibilidades de inovação no espaço democrático.
Assim, requeremos o veto, por contrariedade ao interesse público, do §3º do art. 29 do PL 317/2021.
Assinam esta nota:
ARTIGO 19 Brasil
Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji)
Associação Data Privacy Brasil
Associação dos Especialistas em Políticas Públicas do Estado de São Paulo
Associação Fiquem Sabendo
Associação Nacional da Carreira de Desenvolvimento de Políticas Sociais (Andeps)
Brasil.IO
Colaboratorio de Desenvolvimento e Participação da USP
Compas – Ciranda
Dado Capital
Fundação Avina
Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030
Iniciativa Educação Aberta
Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS)
Instituto Educadigital
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
Instituto de Governo Aberto (IGA)
Instituto Não Aceito Corrupção
Instituto Nupef
Instituto Oncoguia
Instituto Socioambiental (ISA)
Lagom Data
LegisLab – Laboratório de Legislação e Políticas Públicas
Observatório para a Qualidade da Lei
Open Knowledge Brasil (OKBR)
Rede pela Transparência e Participação Social (RETPS)
Transparência Brasil
União Colegial de Minas Gerais (UCMG)