Ao deixar o cargo de diretora-executiva da Open Knowledge Brasil, Fernanda Campagnucci relembra as principais conquistas e desafios desde 2019
É hora de partir. Deixo a direção executiva da Open Knowledge Brasil (OKBR) após intensos 4 anos e meio.
Não foi apenas uma jornada, foram múltiplas: passamos por uma pandemia, enfrentamos ameaças graves à nossa frágil democracia, sofremos eventos climáticos extremos e acompanhamos profundas transformações no cenário da tecnologia. Essas transformações aumentaram a concentração econômica e de poder das plataformas e big techs e viraram de cabeça para baixo o ambiente de informação no mundo inteiro.
A missão da Open Knowledge Brasil sempre esteve na confluência desses fatores. Então, dirigir uma organização da sociedade civil como esta, tendo todo esse pano de fundo, fica ainda mais desafiador. Nos bastidores, cumprir essa função exige quase uma dupla identidade para liderar e gerir.
Por um lado, liderar significa vislumbrar e sonhar caminhos, identificar oportunidades, apontar o possível e trabalhar junto para construí-lo. Quando se lidera pelo exemplo e de forma horizontal, como busco fazer, precisamos colocar os braços inteiros na massa: escrever, organizar, analisar e até codar. Exige rompantes de energia, empolgar e deixar-se contagiar pela empolgação da equipe, perder um pouco a noção do tempo ao mergulhar numa ideia. É preciso observar o ambiente em que estamos inseridos e conhecer as capacidades que cada membro da equipe talvez sequer saiba que tenha para responder a esse ambiente.
Gerir, por outro lado, demanda o domínio completo do tempo. Planejar e cumprir prazos, zelar pela institucionalidade, manter a mais produtiva interlocução com parceiros, com o campo e com o poder público, preocupar-se em deixar tudo em ordem para que o futuro venha sempre sem sobressaltos, manter contas bancárias no azul e o fluxo de caixa em dia — mares pelos quais naveguei com muito mais tranquilidade com o Murilo Machado, diretor de operações da OKBR. Gerir é, também, manter a constância na atenção à equipe, no desafio de cultivar laços remotos e manter a humanidade das relações à distância – em parte impostas pela pandemia, mas que também permitem ter colegas espalhados pelo Brasil e além.
Quando olho para trás, vejo nas três frentes da OKBR resultados que muito me orgulham.
A Escola de Dados precisou se reinventar durante a pandemia, criando uma metodologia própria de cursos online com aulas gravadas, ao vivo e práticas. O curso Dados 360, voltado principalmente a principiantes completos, surgiu nos primeiros meses da pandemia e recebeu centenas de alunos em todas as suas edições. A demanda foi tanta que ele foi adaptado até para turmas inteiras de gestões municipais e outros órgãos públicos. A partir dele, desenvolvemos uma plataforma de formação que ajudou milhares de pessoas a desvendar o mundo dos dados e da programação em temas como educação, segurança pública, meio ambiente, jornalismo de dados locais.
Passamos a interagir com novos públicos e territórios, fomentando e fortalecendo outras comunidades. Um exemplo dessa nova realidade é o Coda Amazônia, Conferência Regional de Jornalismo de Dados e Métodos Digitais derivada do Coda.Br que caminha para sua terceira edição em Belém (PA) e cuja concepção contou com o envolvimento ativo de lideranças locais. Seria impensável produzir um evento desse escopo sem uma forte interação local, e assim todos crescemos. Em 2023, uma das atividades mais gratificantes foi trocar conhecimentos com as comunidades ribeirinhas de Salvaterra, em parceria com o Observatório do Marajó.
O programa de Advocacy e Pesquisa ganhou institucionalidade e relevância. As iniciativas em torno da Transparência da Covid-19 impulsionaram a abertura de dados de forma sem precedentes em estados e capitais e impactaram outras áreas do poder público, pautando decisões judiciais e projetos de lei, e subsidiando o trabalho de diferentes setores da sociedade civil, da imprensa à academia. Foi uma experiência tão rica em aprendizados que fizemos questão de contá-la em um livro.
Em termos organizacionais, essa iniciativa foi um divisor de águas na nossa atuação junto ao poder público. A OKBR, que já tinha uma história de pioneirismo e cooperação no tema, passou a ser referência na política de abertura de dados em todo o Brasil. O curso Publicadores de Dados — que também virou livro — nasceu da demanda por formação para a governança e abertura de dados e nos conectou com equipes de gestão do Acre ao Rio Grande do Sul.
Foram diversos os espaços institucionais que abriram as portas para a OKBR em decorrência desse reconhecimento. No ano que antecedeu as eleições de 2022, tive a honra e a responsabilidade de compor a Comissão de Transparência Eleitoral do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ali, testemunhei e contribuí com os esforços de incrementar as boas práticas do órgão,fundamental para a sustentação de nossa democracia. Também fomos chamados a colaborar em colegiados como o Conselho da Controladoria Geral da União, grupos de trabalho como o do Conselho Nacional de Justiça e audiências públicas no Congresso e no Ministério Público, sempre tratando dessa delicada intersecção entre tecnologia e interesse público.
Na frente de Inovação Cívica, o Querido Diário proporcionou alegrias e muita esperança em novas formas de se contrapor a um ambiente repleto de poluição e concentração informativa. Acreditamos que a melhor esperança contra a desinformação é o acesso à informação de qualidade e que a sociedade civil deve construir suas próprias ferramentas com tecnologias livres. Por isso, construímos uma infraestrutura de dados abertos de diários oficiais municipais capaz de alimentar outras iniciativas, como o Diário do Clima e a Tecnologias da Educação. Chamamos a atenção do mundo: pude apresentar o Querido Diário em Buenos Aires, Zurique e em Washington, quando tivemos o reconhecimento da Digital Public Goods Alliance durante a Cúpula do Nobel, em 2023.
Parte dos resultados de que mais me orgulho, porém, fica quase invisível para quem está de fora, mas foi imprescindível para termos alcançado os demais. Desde o primeiro dia desta gestão, trabalhamos para fortalecer a governança da OKBR, suas práticas administrativas, seu planejamento estratégico, os critérios de contratação e mecanismos de transparência financeira e institucional. São tarefas árduas, que só quem está no dia-a-dia conhece, mas são fundamentais para que esta pequena organização possa crescer sem maiores sobressaltos.
A busca por sustentabilidade passa pela diversificação de patrocínios e formas de apoio institucional, mas também pela estruturação de serviços alinhados à missão da OKBR. Chegamos à alentadora marca de 30% de receitas provenientes de serviços que prestamos e cursos que realizamos. De maneira inovadora em todo o campo do terceiro setor em que estamos inseridos, publicamos essa prestação de contas atualizada quase em tempo real em nosso site. Somos uma organização que ensina a usar dados para tomar decisões, que promove a transparência da informação, portanto considero fundamental que nossa gestão reflita esses valores.
Fecho este ciclo com a esperança de ter contribuído para distribuir a liderança em cada uma das frentes da OKBR, multiplicando as capacidades dessa equipe que também muito me ensinou. Agora, passo o quepe e o leme deste barco para as mãos habilidosas da Haydée Svab, por quem tenho profundo respeito e admiração há mais de uma década. Quem ainda não a conhece logo vai concordar comigo.
A partir de hoje, acompanharei o trabalho da OKBR como conselheira e membro dessa comunidade pelo conhecimento livre.
Até a próxima!