Especialistas internacionais contextualizam o acesso à informação nos países da região no último webinar da série “Construindo a Abrelatam para uma América Aberta”
Na Argentina, um recente decreto regulamentar visa restringir o acesso à informação pública. No México, uma reforma* pretende desmantelar o Instituto Nacional de Transparência, Acesso à Informação e Proteção de Dados Pessoais (INAI). Esses são apenas dois episódios de 2024 que servem de indícios para possíveis retrocessos no acesso à informação na América Latina.
A Costa Rica, por outro lado, aprovou em outubro uma nova lei de acesso à informação. No entanto, a legislação possui lacunas, como a ausência de um órgão independente para garantir o seu cumprimento. E o Brasil pretende fazer a revisão de sua Lei de Acesso à Informação, após mais de uma década da legislação em vigor.
É com esse contexto em mente que a Open Knowledge Brasil (OKBR) organizou o último webinar da série “Construindo a Abrelatam para uma América Aberta”.
Para discutir avanços e retrocessos no acesso à informação na região, o décimo episódio contou com a participação de Florencia Caffarone, economista e diretora da Democracia en Red, e Susana Soto, docente especializada em uso de tecnologias digitais e processos de geração de capacidades para cidadania, co-fundadora e diretora de projetos da Abriendo Datos Costa Rica. Haydée Svab, engenheira e diretora executiva da OKBR, também participou da conversa, que teve a mediação de Murilo Machado, jornalista e diretor de operações da OKBR.
Abaixo, você assiste o webinar na íntegra e confere um breve resumo do que foi discutido.
Argentina
Após a promulgação da Lei de Acesso à Informação no país, Florencia avalia que houve grandes avanços, principalmente em relação à transparência passiva. Com a criação da Agência de Acesso à Informação Pública, pedidos de acesso à informação podem ser realizados à distância, de maneira digital, bem como o acompanhamento das solicitações.
Um aspecto negativo é que os pedidos feitos no sistema da Agência demandam a identificação da pessoa solicitante, mas o benefício de sua implementação é que a maioria dos organismos que dependem do governo nacional argentino se encontram neste mesmo sistema, e de forma geral, nos últimos anos, as taxas de respostas têm sido bastante altas a nível nacional.
Curiosamente, o decreto argentino 780/2024 veio após a decisão do Procurador Geral da Nação na Argentina negar o acesso a informações dos cachorros de Javier Milei, atual presidente. Na prática, o decreto restringe o acesso à informação pública, aumentando exceções e ferindo o princípio de legitimidade ativa, que significa que o exercício do direito de acessar informações públicas não exige que o solicitante prove interesse direto, demonstre legitimidade jurídica ou justifique como usará os dados requisitados.
Caffarone avalia que o decreto representa um retrocesso ao direito de acesso e preocupa, tanto pelas consequências práticas quanto pela mensagem política transmitida. Ela ressalta ainda que a desatualização do portal de dados abertos do país também demonstra uma falta de compromisso do atual governo com a transparência ativa.
Costa Rica
Na Costa Rica, o direito de acesso à informação é reconhecido pela Constituição de 1949, mas de maneira limitada, já que o conceito moderno de acesso à informação não existia na época. A constituição também menciona o direito de acessar informações de interesse público, o que permite brechas para que instituições neguem informações sob a justificativa de que não são “de interesse público”.
Recentemente, foi aprovada a Ley Marco de Acceso a la Información Pública, que representa um avanço pois encara o acesso à informação como um direito humano e considera 17 princípios, dos quais destacam-se: transparência, controle, acessibilidade, gratuidade, disponibilidade, inclusão, qualidade da informação e uso de tecnologias. Ainda permaneceram lacunas importantes, como a ausência de um órgão independente para garantir o cumprimento da lei. Em vez disso, a responsabilidade foi atribuída à Defensoria dos Habitantes, um órgão ligado à Assembleia Legislativa cujas decisões não são vinculantes.
Outro ponto de atenção é que se trata de uma lei geral e exige regulamentação posterior, que tem um prazo (curto) de 3 meses para ser publicada. Susana avalia que há o risco de atrasos. Ela também indica que, hoje, é a Sala Constitucional da Corte Suprema de Justiça que decide sobre o direito de acesso à informação, mas de forma reativa e casuística: as decisões focam em casos individuais e não criam regras gerais para todas as instituições.
Há um aumento nos recursos apresentados à Sala Constitucional por violações do direito de acesso, com números recordes este ano. Ou seja, existe uma falta de cultura de apropriação do direito de acesso à informação. A Costa Rica foi um dos últimos países da região a promulgar uma lei de acesso à informação. E embora exista um decreto de dados abertos, ele se aplica apenas às instituições do poder executivo central, deixando de fora outras entidades públicas. A nova lei prevê a entrega de informações em formato aberto, mas somente mediante solicitação de requerentes.
Brasil
Para Haydée Svab, a Lei de Acesso à Informação (LAI), vigente no Brasil desde 2012, fortaleceu a transparência ativa do país, por estabelecer que órgãos públicos devem divulgar informações essenciais, como dados financeiros e licitações, de forma proativa. Segundo Svab, no período anterior à lei, a falta de respostas era a norma, mas apesar disso muitas instituições ainda se limitam ao mínimo exigido pela legislação.
A LAI também instituiu um procedimento claro e objetivo para pedidos de acesso à informação, definindo prazos específicos e garantindo o direito de recorrer em diferentes instâncias caso as solicitações não sejam atendidas. Essa estrutura trouxe segurança jurídica e previsibilidade para quem busca informações públicas. Mas, na prática, os prazos nem sempre são respeitados, e a qualidade das respostas ainda deixa a desejar. Embora a taxa de respostas no âmbito federal ultrapasse 90%, segundo o Painel da LAI, a satisfação dos usuários com o conteúdo das respostas é moderada, com nota média de 3,6 em uma escala de 0 a 5.
Um dos desafios enfrentados pela LAI é a desigualdade em sua implementação. Enquanto o governo federal possui maior estrutura para cumprir a lei, estados e municípios enfrentam dificuldades técnicas e financeiras. Outro ponto importante é a resistência à transparência, ainda presente em algumas instituições e setores.
Embora a LAI tenha transformado o cenário da transparência pública no Brasil, ainda há lacunas. Svab ressalta, inclusive, que projetos como o Querido Diário, da OKBR – que busca abrir e disponibilizar em formato acessível os diários oficiais de municípios brasileiros – surgem a partir dessa lacuna de dados abertos.
Na visão da diretora da OKBR, no entanto, melhorar a qualidade das respostas, ampliar o alcance da lei para abarcar organizações privadas que prestam serviços de interesse público e superar desigualdades regionais são passos essenciais para avançar no acesso à informação, em especial num contexto de revisão da LAI. Ela avalia também que a construção contínua de uma cultura de transparência é fundamental para que a sociedade se aproprie desse direito e utilize-o plenamente em benefício do controle social, da inovação e da democracia.
Desafios compartilhados
Os desafios enfrentados pela América Latina na promoção da transparência e do acesso à informação pública são amplos e complexos. A recente aprovação da extinção do INAI mexicano, o decreto limitante da LAI argentina e a relativa fragilidade institucional da lei costarriquenha são alertas para todos os países da região, evidenciando que nenhum está livre de retrocessos em questões de governança aberta.
Ainda que com matizes diferentes, há algo em comum permeando a atuação de organizações ativistas pelo direito do acesso à informação na América Latina: o temor de retrocessos, que não se limita ao acesso à informação, mas também propaga para outros aspectos fundamentais, como a liberdade de expressão e a defesa da democracia. A médio e longo prazos, processos de desmonte como os que ilustramos aqui têm impactos profundos. O desfinanciamento e a perda de especialistas comprometem a capacidade técnica e a infraestrutura necessária para a transparência ativa, tornando a reconstrução demasiada e desnecessariamente custosa. Mesmo com leis em vigor, a ausência de pessoal qualificado e recursos adequados inviabiliza a implementação efetiva dessas normativas.
O Brasil vem se recuperando de retrocessos enfrentados recentemente. Segundo Haydée, durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, a transparência foi minada em áreas cruciais, como saúde pública e educação. A interrupção da publicação de dados de saúde durante a pandemia e o fechamento de microdados educacionais pelo Inep são alguns dos exemplos mais notáveis. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) também tem sido utilizada para negar pedidos de acesso a informações de interesse público, um problema que demanda maior monitoramento e pressão da sociedade civil.
A diretora da OKBR ressalta que a reconstrução da transparência exige esforço técnico e cultural, especialmente para restaurar a credibilidade e a confiança nos mecanismos de acesso à informação. Ela também enfatiza a necessidade de dados abertos mais robustos e interoperáveis, fundamentais para mapear questões ambientais e econômicas, como o desmatamento e cadeias produtivas. Em sua opinião, a revisão da LAI, que se afigura em breve, deve considerar avanços nesse sentido, incluindo a obrigatoriedade de dados abertos, algo que o texto atual não aborda de forma explícita.
Diante desse cenário, a cooperação internacional emerge como uma ferramenta crucial de articulação política. A troca de experiências e a construção de alianças regionais podem fortalecer a resistência contra retrocessos, incentivar a implementação de boas práticas e pavimentar os avanços necessários. Além disso, há um potencial significativo nos níveis subnacionais de governo, em que agendas de transparência podem resistir, mesmo em contextos nacionais adversos. Os governos locais podem atuar como bastiões da cultura de abertura, garantindo a continuidade de práticas que promovam o acesso à informação, bem como a transparência, a integridade e o controle social.
Para enfrentar esses desafios, é fundamental fortalecer a sociedade civil, investir na capacitação técnica e criar espaços de diálogo que promovam a transparência como valor essencial. Esses esforços precisam ser complementados por uma abordagem estratégica que envolva tanto os atores locais quanto a comunidade internacional, com foco na preservação de conquistas e na construção de um futuro onde a abertura e a democracia estejam no centro das políticas públicas.
*Link acessível apenas por meio de IPs locais.