ITC-19 da Open Knowledge Brasil foi utilizado por imprensa, órgãos de controle, poder legislativo, judiciário, pesquisadores e gestores públicos; instrumento ajudou a reduzir o apagão de informação sobre a pandemia no Brasil.
Estamos chegando perto dos dez meses de enfrentamento da Covid-19 no Brasil — em 26 de fevereiro de 2020, o país registrava a confirmação do primeiro caso. Desde então, a Open Knowledge Brasil (OKBR) tem buscado incidir sobre o debate público com aquilo que a nossa rede sabe fazer de melhor: avaliar a disponibilidade de dados abertos pelos governos e mobilizar comunidades com o uso de tecnologia, fazendo valer o direito de acesso à informação e ao controle social.
Em maio, publicamos um primeiro balanço sobre o impacto do Índice de Transparência da Covid-19 (ITC-19), lançado dois meses antes, em 3 de abril. Se, na época, já estávamos bem impressionados com os resultados, chegamos ao final do ano com a certeza de que o impacto gerado pelo nosso trabalho contribuiu, e muito, para que não enfrentássemos o período em pleno apagão de informações.
O primeiro boletim mostrou que o país estava absolutamente no escuro com relação aos dados da Covid-19: 90% dos estados não alcançavam, àquela altura, os níveis “Bom” ou “Alto” de transparência. Após dez semanas, com os esforços empreendidos pelos estados e ampla repercussão da imprensa, esta realidade se inverteu: no décimo primeiro boletim, em junho, apenas 11% (3 estados) continuavam nessa condição. Vale lembrar que, até hoje, o governo jamais assumiu seu papel constitucional de articular os demais entes para liderar o processo de transparência — o que acabou por tornar os parâmetros do ITC-19 ainda mais necessários.
A “RÉGUA” SUBIU
Em julho, subimos a “régua” da avaliação e passamos a monitorar o dobro de indicadores, incluindo novos critérios demográficos, como raça/cor, pessoas privadas de liberdade, profissionais de saúde; além de aperfeiçoar os critérios sobre a infraestrutura de saúde, incluindo ocupação de leitos e testes. Naquele momento, também passamos a monitorar as capitais — alternando, semanalmente, a avaliação de estados e prefeituras.
Com a régua mais alta, mostramos que metade dos estados não estava divulgando a quantidade de casos suspeitos, mas apenas os confirmados de Covid-19. Na primeira medição, após receberem a nova metodologia, 46% dos entes passaram a publicar a situação de pessoas privadas de liberdade, por exemplo. Quando esse número subiu para 68%, em outubro, mostramos que ainda estava longe de ser suficiente: quase a totalidade (95%) não informava dados básicos, como sexo e faixa etária da vítimas nesse grupo. Em agosto, todos os estados alcançaram o patamar mínimo de “Bom” pela primeira vez.
Já as capitais mostraram ter mais resistência ou dificuldades em avançar. No primeiro boletim, 58% ficaram em categorias insatisfatórias, abaixo de “Bom”. Em dezembro, após avanços e retrocessos, 54% das capitais estavam ainda nessa condição — as movimentações pré e pós-eleitoral parecem ter prejudicado, e muito, a transparência nesses entes.
MERGULHAMOS NOS TEMAS
Com o último boletim especial duplo, que traz a situação de estados e capitais, chegamos a 30 relatórios produzidos sobre a transparência da Covid-19 em 2020. Foram muitos os ângulos e aspectos tratados para qualificar o debate com dados e informações objetivas sobre a pandemia.
Tratamos da falta de divulgação sobre a situação de leitos e da ausência de microdados, cobramos transparência dos dois estados mais afetados no início da crise, SP e RJ, e por região, como o Sul do país, que chegou a apresentar o pior desempenho e foi a última a avançar.
Alertamos para o fato de que dez estados haviam anunciado a retomada de atividades econômicas e a flexibilização do distanciamento sem dar transparência à ocupação de leitos; apontamos para os retrocessos na transparência do governo federal que, com sucessivas trocas de ministros, deixou o país em um verdadeiro apagão de dados, no começo de junho.
Apontamos como a variedade de sistemas e painéis também prejudica a transparência, gerando inconsistência de informação. A baixa maturidade no desenvolvimento e segurança dos sistemas pelo Ministério da Saúde, aliás, desencadeou a maior exposição de dados pessoais que o país já viu — e a OKBR já havia denunciado meses antes ao órgão, que não tomou as devidas providências.
Por diversas vezes, trouxemos elementos para mostrar que os estoques de testes não estavam sendo divulgados, como em outubro, quando 62% das capitais omitiam dados sobre os insumos disponíveis. Com tanta opacidade, não foi uma completa surpresa para nós quando, em 22 de novembro, o Estadão revelou que 6,8 milhões de testes (mais do que o total já realizado no país desde o início da pandemia) estavam prestes a perder a validade por falta de distribuição.
A partir de outubro, em nova fase, os boletins se tornaram mensais, e passamos a produzir relatórios temáticos. Em parceria com a Hivos, por meio do programa Todos os Olhos Na Amazônia, divulgamos três edições especiais sobre a região — a quarta deve sair em janeiro. Em setembro, mostramos que a Secretaria Especial de Saúde Indígena deixou de contar pelo menos 103 mortes no país; e que, apesar de o item ser obrigatório, um a cada 4 casos (25%) de Covid-19 ou SRAG suspeitos ainda não informavam Raça/Cor dos pacientes.
IMPACTO POR SETOR
A transparência não é um fim em si mesmo: acreditamos firmemente no poder da informação para gerar engajamento social. Foi o que vimos com o ITC-19. Com os dados e análises gerados pela OKBR com seu ranking, diversos setores puderam usar esse material para causar impacto positivo. A seguir, resumimos esses usos por área.
Imprensa. O tema ganhou ampla visibilidade, tanto na imprensa nacional, como regional. Foram mais de 200 inserções em jornais, revistas, portais e programas jornalísticos televisivos e radiofônicos. O Índice foi assunto na TV Globo (Jornal Nacional, Bom Dia Brasil, Globo News e nos jornais televisivos locais de GO, TO, PE, SP, BA, PI, PR, RS, SC); Rádio CBN, G1, Jornal O Globo, UOL, Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Estado de S. Paulo, Correio Braziliense, Zero Hora, Deutsche Welle, Nexo Jornal, entre muitos outros. Semanalmente, os veículos repercutiam os resultados do ranking e estimulavam os governos a melhorar sua pontuação.
Gestão pública. Os governadores de diversos estados (ES, CE, RJ, MG, RN, entre outros) já comentaram publicamente, nas redes sociais, o desempenho de seus governos no ITC-19. Trocamos mais de 300 mensagens com gestores públicos de diversos estados, buscando apoiá-los na disponibilização dos dados. Até agora, publicamos três toolkits de apoio às gestões, que tratam da publicação de microdados, de boas práticas para comunicação e do atendimento de pedidos de acesso à informação durante a pandemia. Nas entrevistas que já publicamos com alguns dos que tiveram maior destaque — os estados de ES, AL e AM, e as capitais Macapá (AP), Manaus (AM) —, diversos depoimentos mostram como o Índice acelerou processos internos de gestão da informação que ainda não tinham o respaldo político necessário para vir a público. O curso inédito Publicadores de Dados — da gestão estratégica à abertura capacitou mais de 250 gestores e beneficiou 67 organizações, muitas delas trabalhando com a abertura de dados da pandemia.
Pesquisa. A Rede de Pesquisa Solidária, que reúne mais de 100 cientistas e é coordenada por professores da USP, CEBRAP, Fiocruz, entre outros, citou o ITC-19 para denunciar a opacidade do governo federal. Também chamou a atenção para os limites dos dados que estavam sendo abertos pelos estados, ainda que tenham avançado no Índice. Ao lado do Ranking criado pela Transparência Internacional para aferir a divulgação das compras públicas, o ITC-19 foi tema de reportagem da Revista Pesquisa Fapesp. A publicação também tratou da importância da Ciência Aberta, destacando o trabalho da OKBR. O papel da Ciência Aberta e do Governo Aberto foi o tema, ainda, de um webinar da Fiocruz, do qual participamos. O divulgador científico Átila Iamarino, que tem mais de 1,3 milhão de inscritos em seu canal, falou sobre o Índice em abril. Em novembro, participou de um painel do Coda.Br, organizado pela Escola de Dados da OKBR, para falar sobre a cobertura da Covid-19.
Cidadania. A população tem cobrado os governos, nas redes sociais, por mais transparência dos dados da Covid-19, mencionando e compartilhando o ranking. Outras ONGs e redes também utilizaram os dados do ranking para incidência em políticas públicas. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) fez um relatório robusto sobre a situação de violação de direitos dos indígenas na pandemia, com coleta independente de dados. Entre suas fontes, citou o ITC-19. Em dezembro, o Fórum de Acesso a Informações Pública produziu uma nota técnica e fez uma campanha nas redes sociais para avançar na transparência da Covid-19, e também teve o Índice como uma de suas fontes. O Centro de Liderança Pública (CLP) usou o ITC-19 como uma das variáveis para compor seu ranking de enfrentamento à doença.
Judiciário. A OKBR foi admitida como amicus curiae em uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) que teve como objetivo reverter retrocessos de transparência e as falhas de atualização de dados pelo Ministério da Saúde. Esse tipo de incidência foi um movimento inédito para a organização. Além disso, o Índice tem fundamentado ações na Justiça a partir de órgãos como a Defensoria Pública e o Ministério Público Federal. Até o momento, há ações em curso nos estados de São Paulo (que também inclui a União) e Amazonas, e recomendações formais dos Ministérios Públicos Estaduais do Acre, Pará, Distrito Federal e Amapá.
Legislativo. Projetos de Lei na Câmara e no Senado Federal tomaram o Índice como base para propor a obrigatoriedade da divulgação de dados pormenorizados sobre a doença e a infraestrutura de saúde no país. Os tribunais de contas estaduais, órgãos de controle externo e de assessoramento do poder legislativo também utilizaram o ITC-19 para cobrança, como o TCE de Tocantins.
Pelo mundo. A iniciativa mereceu atenção internacional. A Parceria para o Governo Aberto (OGP) indicou o Índice de Transparência da Covid-19 como um dos exemplos de iniciativas recentes para responder à pandemia pelo mundo. Além disso, o jornal argentino La Nación destacou as análises da OKBR sobre o “apagão de dados no Brasil”, e o coletivo de origem espanhola Kaos en la Red abordou a necessidade de coletar dados sobre os efeitos da Covid-19 de acordo com raça/cor e pertencimento a grupos étnicos. Em junho, participamos de um painel internacional do Open Data Charter sobre governança de dados da pandemia na América Latina e, em julho, fomos convidados a falar em um painel na RightsCon 2020 sobre a situação do Brasil. A luta das organizações e coletivos por mais transparência da Covid-19 no Brasil, incluindo a OKBR, foi tema de reportagem no portal de tecnologia “Rest of the World”.
APOIO E PARCERIAS
Não teríamos atravessado esse ano difícil e chegado a tantos resultados positivos se não fosse o apoio de antigos e novos parceiros nessa empreitada. Pelo apoio direto ao trabalho no ITC-19, temos muito a agradecer a Hivos, Instituto de Governo Aberto, Plataforma de Ciência de Dados aplicada à Saúde (PCDaS) da Fiocruz, Open Society Foundations e Instituto Galo da Manhã. Também ao Fundo Aliança para Lideranças de Impacto no Setor Público e no Terceiro Setor, formada por Fundação Brava, Fundação Lemann, Instituto Humanize e República.org — a OKBR foi selecionada, em setembro, na chamada pública realizada pelas organizações.
Outro valoroso apoio foi o da equipe da Café.art, que redesenhou a plataforma do ITC-19 e tornou sua visualização de dados mais interativa e dinâmica. Não à toa, o site do Índice de Transparência da Covid-19 ganhou bronze no prêmio Brasil Design Award, além de ter sido selecionado pelo iberoamericano CLAP, de design gráfico, e entre os finalistas do Prêmio Bornancini.
A Rede de Embaixadoras de Inovação Cívica da OKBR, que hoje reúne mais de 100 pessoas, foi outro espaço importante de articulação e trocas sobre os dados da pandemia. Também nas comunidades da Escola de Dados, composta principalmente por jornalistas, pesquisadores/as e programadores/as, pudemos discutir e aprender sobre os desafios da transparência da Covid-19.
E AGORA?
Em 2021, a luta por mais abertura e transparência deve continuar. Além do recrudescimento da pandemia neste final de ano — que já mostrou fortes sinais de uma segunda onda —, precisaremos monitorar os esforços para a vacinação da população. Ou seja, mais que diagnóstico, testes e leitos, o Brasil também deverá acompanhar de perto os dados sobre insumos para as vacinas, sua distribuição e a população que está sendo imunizada.
Faremos uma pausa nas avaliações regulares do ITC-19 para estudar como esse acompanhamento seguirá a partir de agora. Os desafios se multiplicam. Mais do que nunca, precisaremos do apoio de todos para seguir com esse trabalho e expandir as áreas de avaliação sobre dados abertos para outros campos das políticas públicas. Junte-se à nossa rede nessa mobilização pelo conhecimento livre: dados abertos podem salvar vidas!