As diferentes licenças Creative Commons e o impacto na produção de conhecimento livre

06 fev de 2015, por OKBR

Compartilhar

Libertando a força do comum

Não diga licença Creative Commons sem especificar qual, pois as diferenças entre as licenças têm consequências profundas.

Artigo originalmente publicado na revista ARede.

Por Alexandre Hannud Abdo

Em fevereiro de 2008, a Creative Commons (CC) fez uma alteração muito particular na apresentação das suas licenças. Duas licenças especiais tiveram suas páginas pintadas com fundo verde, representando “prossiga”, enquanto as demais foram coloridas de amarelo, para “atenção”. Além do fundo verde, as licenças “Atribuição” e “Atribuição-CompartilhaIgual” receberam também uma distinção que diz: “Aprovada para obras culturais livres”.

O objetivo foi distinguir as chamadas licenças livres daquelas que, apesar de não estabelecer reservas a todos os direitos, não são compatíveis com a produção de um acervo de conhecimento e cultura livres. Essa mudança foi acompanhada de um anúncio que repetia uma velha lição da organização: não diga licença Creative Commons sem especificar qual, pois as diferenças entre as licenças têm consequências profundas.

Desde as primeiras versões, as licenças CC permitem, na combinação de cláusulas que formam cada uma, a inclusão de restrições que preservam diferentes aspectos da propriedade privada do conhecimento originada na lei de direito autoral. Ao contrário do pretendido por seus idealizadores, duas dessas restrições proprietárias foram e permanecem muito utilizadas: as SemDerivados (ND) e a NãoComercial (NC).

Mais fácil de ser entendida, a restrição às obras derivadas (ND) veta a distribuição de qualquer trabalho que incremente ou recombine uma obra sem expressa autorização de todos os detentores de direito patrimonial sobre a obra. Quanto à restrição ao uso comercial (NC), as consequências são menos evidentes e, até por isso, tão ou mais drásticas.

Vejamos os problemas mais graves da restrição NC e por que a condição CompartilhaIgual (SA – sigla para ShareAlike) responde de forma mais eficaz e solidária aos principais receios que levam pessoas a adotar tal restrição.

Um primeiro fato a se observar é que a comunidade de software livre, matriz dos movimentos contemporâneos pela liberdade do conhecimento, não admite nada semelhante a uma restrição NãoComercial. Isso não é acidental, visto que a “liberdade zero” do software livre trata justamente de tornar explícito que o contribuidor abre mão de qualquer possibilidade de controlar o uso que os indivíduos fazem do software distribuído.

Sem essa liberdade, as aplicações benéficas do software livre na economia, promovendo autonomia ao trabalhador e combatendo monopólios, seriam suprimidas; não haveria um mercado de serviços associado ao movimento, e os recursos e interesse disponíveis para seu progresso seriam ordens de grandeza menor.

Para ilustrar essa consequência para além do software, vamos avaliar o caso dos textos da revista ARede, que utilizava a licença NC e, a partir desta edição, passa a usar a licença CompartilhaIgual. A restrição NC impedia, na lei: “Educadores em serviço privado de utilizá-los em material de aula ou distribuir fotocópias; blogs, sites ou qualquer mídia de circulá-los, se vendem anúncios ou impressos para viabilizar-se; autônomos ou empresas, de todos os tamanhos, de ofertarem serviços que potencializassem seu uso ou os aprimorassem; e impedia até mesmo a distribuição de cópias físicas a preço de custo para atender demanda fora do alcance.”

Genericamente, tal restrição impede as obras – salvo pelo mesmo caminho dos direitos reservados – de assumir um papel na economia e geração de renda da sociedade, limitando os benefícios do potencial multiplicativo da informação exatamente onde podem ser mais necessários.

Aliado a essa liberdade, o software livre ainda introduziu o conceito de copyleft, a ideia de que o uso incremental e recombinante do comum deve permanecer comum, para fortalecer a liberdade dos indivíduos e avançar o desenvolvimento de um ecossistema livre. Mas o software livre não representa a única comunidade planetária que percebeu logo cedo a falácia de impôr restrições de uso ao comum. A Wikipédia e seus projetos irmãos, constituindo o Movimento Wikimedia, a seu exemplo, adota uma licença livre e copyleft, atualmente a Creative Commons Atribuição-CompartilhaIgual. O movimento de Acesso Aberto à ciência segue a mesma orientação, recomendando apenas Atribuição, sem o copyleft. E também as comunidades de dados abertos, que em muitos casos promovem mesmo a dedicação ao domínio público, sem nem a condição de atribuição.

Acumulação coletiva

Uma consequência da opção desses movimentos é que uma obra livre pode recombinar-se à vontade com a totalidade dos seus acervos, enquanto qualquer obra submetida a uma restrição NC não pode ser facilmente incorporada a esses projetos, nem utilizar esse imenso acervo disponível para seu próprio aprimoramento. E mesmo que permita a recombinação dentro do universo de outras obras não comerciais, que não é pequeno, a restrição acaba por impedir tanto seus contribuidores como o progresso da obra em si de valerem-se de suas aplicações econômicas, sempre que a obra em transformação torna-se relevante ao ponto de ter uma vida própria, passando por vários autores. Para suspender a restrição seria necessário fazer acordos com todos e, havendo um único indisposto ou inacessível, o processo todo falharia – a menos que se suprima a contribuição desses, o que nem sempre é viável ou possível.

A restrição NC, além de legitimar uma lógica de controle e propriedade sobre o conhecimento, privilegia aqueles que podem arcar com altos custos de transação para obter permissões sobre a obra. Assim, enquanto a acumulação sob a condição CompartilhaIgual é coletiva e tem efeito positivo para o comum, a NC falha ao dificultar a integração das obras às atividades de subsistência coletivas e autônomas, e ao replicar os vícios da acumulação proprietária, reproduzindo parte da dinâmica de privilégio econômico dos direitos reservados.

Uso comercial

Há ainda um mal entendimento do que significa uso não comercial. Muitas pessoas associam ao uso sem fins lucrativos. Porém, tanto a atividade de uma associação comunitária pode configurar uso comercial, quanto a de uma empresa privada multinacional pode satisfazer a cláusula de não comércio. Assim, mesmo quem não quer seu trabalho associado ao lucro – o que em termos do desenvolvimento do comum já é por si questionável ante a experiência do soft-
ware livre e os efeitos de acumulação discutidos acima – não é atendido pela restrição.

Também aí a condição CompartilhaIgual aparece como alternativa superior, pois por mais que uma obra seja incorporada por outros, o contribuidor sempre pode tomar de volta integralmente a derivação e usar a própria exposição da atribuição a seu favor e das suas ideias.

Além do mais, todas as licenças CC carregam uma cláusula importantíssima, mas pouco conhecida, que proíbe qualquer uso da obra que dê a entender que seus autores aprovam ou endossam. E, como todas as licenças CC no mínimo permitem a circulação gratuita da obra, situações comerciais em geral estão associadas à solução de uma necessidade concreta e inovadora, pois caso contrário a obra estaria chegando sem custo.

É comum nós, brasileiros, ignorarmos certas leis individualmente, vivendo em estado libertário sem precisar admitir essa postura. Contudo, essa estratégia não se presta a empreendimentos coletivos mais ousados, onde a escala de ação necessária acaba por acionar os instrumentos de regulação que irão reprimí-la. Por isso, apesar de muitas vezes a questão das licenças parecer árida e abstrata, além de contraintuitiva, são as licenças livres que sustentam o pé jurídico e organizador indispensável para projetos colaborativos, como o Software Livre, a Wikipédia e os movimentos de Acesso e Dados Abertos, a adquirirem a amplitude necessária para transformar profundamente nossa sociedade.

Alexandre Hannud Abdo é cientista molecular e há mais de uma década contribui de todas as maneiras que encontrou com projetos de software, conhecimento e cultura livres.

O conteúdo desta postagem está sob uma Licença Creative Commons Atribuição CompartilhaIgual 3.0.